A Escola onde os alunos se formam Anarquistas!

Entram com 16 meses, saem com 16 anos. Entram livres, saem libertários. Entram de fraldas, saem com as vestes ideológicas da anarquia. Esta é a história de uma escola livre, autogestionária, em Mérida. Uma escola onde todos fazem tudo em partes iguais, onde é proibido proibir. Estão na forja novos anarquistas. Em nome da velha anarquia perdida. Que, nesta escola, nunca se perdeu.

Se há coisa que o capitalismo nos ensina, como naquela epístola do Leonard Cohen sobre o que toda a gente sabe, é que os pobres ficam cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos, que toda a gente quer da vida uma caixinha de chocolates, que neste mundo desigual até a alma tem um preço, que a providência raramente é cautelar e que há ideologias que os estados democráticos e até os autocráticos devem temer, mais ou menos como o diabo teme a cruz ou como um consumidor de electricidade com facturas em atraso teme a visita de um desligador. 

É por isso que o anarquismo, que é uma ideologia relativamente moderna, foi remetida para a arqueologia das coisas, como um despojo tecnofóssil de uma civilização perdida em etimologias vagas e interpretações equívocas. Nos arredores de Mérida, cercado por todos os quadrantes pelo polígono industrial da capital da Extremadura espanhola, vive um pedaço dessa utopia.

A Escuela Libre Paideia é um colectivo libertário na mais pura acepção da palavra. A primeira visita que fiz a esta escola que, aliás, não gosta lá muito de abrir as suas portas a pessoas estranhas ao colectivo, foi em 2013. Uma década depois, só mudaram os alunos. O sítio é o mesmo, muitos dos professores são os mesmos, o método autogestionário é o mesmo, o espírito de liberdade o mesmo é, até o cão é o mesmo. Visto de fora, a sensação também é a mesma: parece um lugar habitado por seres em vias de extinção, invulgarmente felizes. Não há stress, competição. Os olhares e os gestos são tranquilos, de uma certa paz, num silêncio quase melódico. Não existe propriamente um regresso às aulas, como existe no ensino estatal ou no ensino privado, coisas que esta escola orgulhosamente renega, vincando bem os seus princípios anarquistas. Material altamente subversivo, avisa-se já.

Em redor do edifício da escola, nada parece bater certo. Neste sítio, não há utopia que valha a um horizonte em tons de cimento e terracota, onde os postes eléctricos se substituíram às árvores. Ao fundo, vê-se o Hospital de Mérida, como um paradigma suburbano que se ergue no Poligono Nueva Cuidad, onde o movimento é incessante, com lojas de tudo e mais alguma coisa, às moscas. A pandemia Covid 19 foi inclemente com os extremanhos. 

A dado momento, já tinha a Extremadura espanhola mais vítimas mortais que Portugal por inteiro. Esta cidade, erigida ex nihilo no ano 25 a.C. por ordem do imperador romano Octávio Augusto, resistiu às mais mortíferas vagas da pandemia, mas parece dar sinais de pouca resistência à escalada de uma crise que se instalou no mundo com a guerra na Ucrânia, à qual Espanha, tal como Portugal, parecem ainda longe de conquistar imunidade. O corrupio é constante, mas os cafés, os restaurantes, o comércio estão na travessia de um deserto.

Lá ao fundo, na sua vida, sobrevive a anarquia numa casa campestre, onde não é permitida a entrada ao admirável mundo novo que deixou Espanha mergulhada numa crise profunda, que tudo fez estremecer e mais os valores inalienáveis. Parece que o tempo não passou por ali. Ou, então, parece que já passou e aquele é um ground-zero da globalização, um cenário pós-apocalíptico com roupa nos estendais. Oito mulheres e pouco mais de trinta crianças, o número nunca é estanque, formam um grupo de “perigosos” anarquistas, guardados por um cão demasiado velho para ladrar.

Na escola Paideia – Escuela Libre -, exemplar único na Península Ibérica, se não na Europa, ensina-se o anarquismo, na praxis de uma pedagogia libertária, antiautoritária, das 9h00 às 18h00. Não gostam de visitas. Usam roupas simples, falam de liberdade, de igualdade. Acreditam na individualidade e que é nisto que reside a harmonia de um grupo, uma família, uma comunidade, um pueblo, uma cidade, um país, um mundo melhor. Reclamam a sua quota do impossível, fazendo o que podem para o contrariar, naquele hectare de um sonho vasto.

São orgulhosamente sós, este conjunto de hermanos e hermanitos, mestres e aprendizes de uma estirpe rara de gauleses ibéricos, a viver no âmago da maior cidade da antiga Lusitânia.Na escola Paideia, exemplar único na Península Ibérica, se não na Europa, ensina-se o anarquismo das 9h00 às 18h00.

Na escola Paideia, exemplar único na Península Ibérica, se não na Europa, ensina-se o anarquismo das 9h00 às 18h00.

Ilustração: Alex Gozblau

Salut e anarquia

O portão é de ferro velho. Faz o ruído estridente de um violino desafinado. Anuncia a chegada de estranhos, como se fosse um alarme. Se não houver imponderáveis, pouco antes das 9 da manhã chega habitualmente a carrinha que traz os niños da anarquia, quando não são trazidos pelos pais.

A Paideia remonta a 1978, mas as suas origens recuam dois anos, ao post-mortem formal da ditadura de Franco, falecido em 1975. Josefa Martín Luengo, natural de Salamanca, psicopedagoga, professora, activista do colectivo feminista Mulheres pela Anarquia, mudou-se para comunidade de Fregenal de la Sierra – Badajoz -, para aí fundar e dirigir (com todas as aspas) a Escuela-hogar Nertóbriga, uma escola/comunidade anarquista. Velhos e novos fantasmas fizeram com que os seus planos fossem condenados ao fracasso. As “forças vivas” saíram dos esconderijos de então e não permitiram que na comunidade de Fregenal de la Sierra consolidasse a “heresia” de uma escola de libertária no coração do sistema de ensino estatal. “O projecto foi abortado”. Acabaria por refundar-se em Mérida, em 1978.

Josefa Martín Luengo juntou-se a duas companheiras – Maria de Jesus Checa Simó e Concha Castaño Casaseca -, igualmente professoras. E nasceu a Paideia (sistema de educação e formação ética na Grécia Antiga), uma escola infantil da liberdade. Algo incomparável, por ser sucedâneo de nada. A Paideia organizou-se e resistiu. Formou um núcleo pedagógico mais amplo, formou formadores. Mas estava ainda longe do seu ideal de autossuficiência, razão pela qual vários dos membros do colectivo o eram apenas em part-time, dividindo o tempo entre a escola e um trabalho remunerado, que lhes permitisse investir na sustentabilidade da ideologia. Em si, um conceito de neorrealismo capitalista, vulgarmente conhecido por ossos do ofício. Com mais ou menos cedências, as suas fileiras engrossaram. 

Em 1982, o colectivo proclamou a sua idade adulta e constituiu-se numa cooperativa de pais e mães anarquistas, alargando o seu nível de ensino até aos 16 anos. Josefa Martín Luengo faleceu em 2009, deixando o colectivo com um núcleo duro de 15 pessoas. Das fundações até hoje, muitas coisas mudaram. Para começar, mudou o mundo. E com ele a Espanha, para não falar da vizinhança a sul. A grande ilusão esfumou-se. A crise, descobriu outra vez a pólvora. E o número de alunos da escola libertária, que custam em média 100 euros por mês aos pais, tem vindo a aumentar.

A ética anarquista, nesta escola, tem estes fundamentos, que não deixam de ser políticos, se assim lhes quiserem chamar, é-lhes indiferente: “Queremos mudar o mundo e queremos fazê-lo desde cedo, desde a infância. Não acreditamos, nem participamos no ensino oficial, seja este público ou privado. E negamos rotundamente que sejam estas as únicas possibilidades. A estas opomos a escola autogestionária, livre, baseada no princípio da liberdade responsável e solidariedade entre iguais”. Traduzindo em miúdos e graúdos: “A autogestão educativa supõe a realização da aprendizagem individual e colectiva diretamente realizada pelos grupos e comunidades naturais, sem tutela estatal nem expropriação privada alguma”. 

É, portanto, “diretamente realizada pelas pessoas que configuram a comunidade educativo-vivencial: alunos, mães e pais, educadores, ex-alunos, amigos e pessoas de ideologias afins. Um grupo de pessoas criadoras de uma força unificadora, que se baseia na criatividade e nos acordos mútuos que constantemente se realizam”. Assim se constituem como “um colectivo libertário, autodeterminado e autorregulado”. Hasta la vitória: “A escola autogestionária resolve a dicotomia entre a escola-confessional e escola estatal; ambas mediatizadas e mediatizadoras de um sistema pessoal e social capitalista e fascistóide”.

A anarquia do quotidiano

Segunda-feira. Meninos, meninas, professoras e pais distribuíam beijos e abraços genuínos, trocando impressões sobre o fim-de-semana, antes de pais e filhos trocarem o “hasta luego”. É invariavelmente assim. Pelas 10h00, a escola reencontra a sua rotina. Em vez dos tradicionais “buenos días” usa-se “salut e anarquia”. Logo à entrada, preso a um quadro de cortiça, está um desenho de um pirata sorridente com a t-shirt do Freddy Krueger, com a tradução das suas palavras: “Bienvenido a bordo!” Não fosse o ‘o’ das boas-vindas ter um ‘a’ dentro do círculo, não era evidente a simbologia acrata.

A bordo, estão oito mulheres a tempo inteiro. A escola reparte-se em duas casas, com um jardim nas traseiras. As casas têm ambas dois andares, de livre acesso e circulação. É proibido proibir. “Mas isto não significa a inexistência de regras”. No melhor espírito igualitário, ao longo da semana as tarefas são repartidas. “Todos fazem um pouco de tudo”. A nossa guia, professora, tinha mais do que fazer. Chamou duas meninas, sub-12 anos, ambas nascidas praticamente nesta escola, que ficaram com esta incumbência. Seriam elas as guias.

Feitas as apresentações, a mais velha pegou num mapa de tarefas, para ver quais eram as suas, antes de tratar da tarefa que era o periodista. “Ai, ai, ai…” Não ficou satisfeita, quando viu que estava escalada para a cozinha, mesmo ao lado do pequeno hall da casa principal, que atrás tem um pequeno refeitório, estilo franciscano. Uns meninos colocavam os talheres nas mesas, outros ocupavam-se dos primeiros afazeres na cozinha.

Ora então, vamos lá ver o que comem estes anarquistas ao almoço. Crianças, seria no mínimo contraproducente. Uma outra professora que por ali andava, destruiu o mito: “massa com ovos escalfados”. Não devia ser a comida predilecta das cicerones: “Vámonos! Vámonos!”

Quem está livre, livre está

Saímos da casa, em direcção à outra, atravessando um pequeno jardim. Como estava sol, muitas das crianças estavam cá fora, com os livros abertos, sentadas onde lhes apetecia. Íamos a caminho do berço da anarquia, onde se encontravam os bebés e as professoras mais novas do colectivo, anarquistas noviças, com piercing no nariz e o casaco de uma selecção nacional sul-americana, que reluziam a caminho da máquina de transformação de bebés em anarco-bebés, uma sala com paredes almofadadas e cancelas de segurança, que se imaginava com seres dentro de fraldas Kropotkin, babygrows Malatesta, chuchas Bakunin, babetes Proudhon, com uma mão agitando a roca dos filósofos da anarquia, na outra o punho cerrado, ouvindo histórias de encantar, pejadas de mensagens subliminares.

A pedagogia libertária não assenta no caos, mas no método. E o método consiste em criar pessoas livres. Como não é fácil fazer isto sem liberdade, as actividades da escola são o mais livre possível, nos condicionalismos de tempo e de espaço. Sobre o tempo, havia muito a discutir com as professoras, mais versadas no tema. Quanto ao espaço, quando chove ou faz frio torna-se exíguo. Ao lado das fraldas da anarquia, ficavam os meninos que já se tinham de pé regularmente e que eram capazes de sair do sítio sem que alguém os impedisse.

Ainda assim, “há lugares secretos”, adverte uma das anfitriãs. Na escola, sente-se como em casa. Sabe quais são os momentos de aprendizagem, os de cumprimento de deveres e os de pura diversão. Mas, refere uma professora que estava à escuta, “nada é forçado. E nada impede que as coisas se misturem. É esta a chave da pedadogia libertária: liberdade, felicidade, amurecimento da mente, criatividade, responsabilização, diálogo”, proclama.

“Adelante!”. No longo corredor, frente a um quadro com a foto de todas as crianças, sempre em constante actualização, fica a biblioteca. Talvez seja abusivo chamar biblioteca a este quarto, cheio de coisas sem uso aparente, como denunciavam as camadas de pó. Uma fotocopiadora, coberta com uma manta rota, electrodomésticos na reforma, pilhas de documentação, estantes instáveis carregadíssimas de livros. Esfregando o pó às lombadas, encontram-se obras que no apogeu do “generalíssimo” eram de pena perpétua.

Ou talvez não. Escolhendo ao acaso, saiu na rifa o Guia Para a Libertação da Albânia. O grosso das obras, explica a guia, “são de conteúdo libertário”. Encontram-se centenas de livros em cujas palavras esta escola tem alicerces. Andre Berge, “A Liberdade na Educação”. A.S. Neill, “Corações e Não Só Cabeças na Escola”. Outros mais sugestivos: A. Cardona, “A Utopia Perdida – Trajectória da Pedagogia Libertária”. Ou ainda, “Diário de um Educastrador”, de Jules Celma.

“Podemos ir?” – apressou-se a miúda, com ares de quem tinha mais que fazer do que limpar o pó, passando para a sala das caminhas para a siesta, que é uma instituição nacional, parando defronte de uma porta côr de rosa. “Esta é a sala das mulheres”. Lá dentro haviam livros para todas as idades, sobre os ideais de paridade, a discriminação da mulher lata e o trabalho sempre inacabado dos movimentos feministas.

Saímos, passando por uma sala de convívio, em direcção à casa principal. Paragem a meio, para ver dois pequenos anexos, com as paredes exteriores a pedir reforma. Um funcionava como dispensa, com bens alimentares em lata, legumes, massas, artigos de primeira necessidade. Outro, uma oficina, com todo o género de ferramentas. Cedo os meninos aprendem a consertar o que estragam. São os alunos e os professores que asseguram toda a manutenção.

O segundo andar da casa principal, tem quatro assoalhadas. É território dos mais velhos. É aqui que decorrem as aulas, o que explica o silêncio. Os alunos repartem-se em grupos. Quando uns estão em tarefas “domésticas” outros estão nas salas de estudo ou em trabalhos manuais. O mesmo acontece com as professoras.

Ao fundo, a videoteca, que tem ao meio uma mesa ampla, com computadores e um cobertor sujo em cima. Coincidência ou não, sempre que estacionávamos num sítio mais do que cinco minutos, aparecia uma professora, com o dom de adivinhar os pensamentos, tornando desnecessárias as perguntas: “Só usamos os computadores em situações muito excepcionais. Não queremos bombardear as crianças com o que elas não precisam”. Os computadores, são pré-históricos. O seu estado natural é ‘off’.

Algures haverá um vídeo-gravador VHS, a avaliar pela colecção de cassetes, de Pasolini à Guerra das Estrelas. Cá fora, no recreio, os meninos anarquistas faziam coisas de meninos. Um rapaz de 14 anos jogava basquetebol, perseguido por um bando de meninas, a ver se deitavam a mão à bola.

O miúdo explicou que na escola não se joga futebol, nem qualquer outro desporto que implique competição. O mesmo acontece com os “juguetes sexistas”. As pistolas e afins, no caso deles. As bonecas e os artefactos de cozinha, no caso delas. Um cesto é a única coisa tolerável. Deve ser dos poucos lugares em Espanha onde Cristiano Ronaldo podia aparecer de braço dado com Messi, que ninguém lhes ia dar cavaco.

No recreio, há outra coisa que se nota. A ausência do ruído estridente, quando este tem hora marcada. Na escola, as horas que importam são as de entrada e de saída. Entre uma e outra, o relógio é um detalhe.

As professoras, que se apresentaram em brigada e com os sorrisos nas últimas, aproveitaram a hora de almoço para concluir a conversa matinal, avisando que a visita já tinha excedido em muito o tolerável, mais ainda quando se trata de uma excepção. Tudo, neste pequeno mundo autogestionário está feito para “incutir a liberdade individual e colectiva, a não-violência, a igualdade no trabalho, o pensamento livre, a verdadeira anarquia”. É o mundo em redor que os faz ser anti. “Anticapitalismo, antiautoritarismo, antissistema de ensino estatal”.

A Paideia funciona há tempo suficiente para saber o que o futuro reserva às fornadas anarquistas, quando se despedem da escola, enquanto alunos, pois são para sempre parte do colectivo, assim a sua vontade se mantenha dentro da ética anarquista. “Se querem seguir a universidade, não resta outra alternativa se não integrar o sistema, para primeiro encontrar compatibilidade no sistema de ensino secundário e depois prosseguir no ensino superior. Todavia, as mentes já estão formadas e os ex-alunos revelam grande capacidade de adaptação. São pessoas livres. Fazem escolhas em liberdade”.

Nos anos 90, recorda uma professora, sem qualquer tipo de nostalgia, a Escuela Libre Paideia quase dava um passo em falso na ideologia. “A escola teve grande procura e aceitámos muitos alunos novos, de uma burguesia emergente. Os pais começaram a exigir ballet, canto, informática, isto e aquilo. Tivémos de reequacionar os princípios. E foi aos nossos princípios que voltámos”.

Sendo assim, querem exatamente o que queriam em 1978. “Combater por dentro o sistema capitalista, destruindo as relações sociais em proveito do interesse de uma minoria. Queremos o controlo, pela sociedade, do seu trabalho, saúde e educação. O anarquismo é o instrumento de transformação”. O primeiro mandamento desta escola é exatamente o seu objectivo último: “Mudar o mundo”.

Via: https://www.wort.lu/pt/sociedade/a-escola-onde-os-alunos-se-fazem-anarquistas-6337d500de135b92360b4ce5