Carlos Marighella
Carlos Marighella nasceu em Salvador, Bahia, em 5 de dezembro de 1911. Era filho de imigrante italiano com uma negra descendente dos haussás, conhecidos pela combatividade nas sublevações contra a escravidão.
De origem humilde, ainda adolescente despertou para as lutas sociais. Aos 18 anos iniciou curso de Engenharia na Escola Politécnica da Bahia e tornou-se militante do Partido Comunista, dedicando sua vida à causa dos trabalhadores, da independência nacional e do socialismo.
Conheceu a prisão pela primeira vez em 1932, após escrever um poema contendo críticas ao interventor Juracy Magalhães. Libertado, prosseguiria na militância política, interrompendo os estudos universitários no 3o ano, em 1932, quando deslocou-se para o Rio de Janeiro.
Em 1o de maio de 1936 Marighella foi novamente preso e enfrentou, durante 23 dias, as terríveis torturas da polícia de Filinto Müller. Permaneceu encarcerado por um ano e, quando solto pela “macedada” – nome da medida que libertou os presos políticos sem condenação — deixou o exemplo de uma tenacidade impressionante.
Transferindo-se para São Paulo, Marighella passou a agir em torno de dois eixos: a reorganização dos revolucionários comunistas, duramente atingidos pela repressão, e o combate ao terror imposto pela ditadura de Getúlio Vargas.
Voltaria aos cárceres em 1939, sendo mais uma vez torturado de forma brutal na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, mas se negando a fornecer qualquer informação à polícia. Na CPI que investigaria os crimes do Estado Novo o médico Dr. Nilo Rodrigues deporia que, com referência a Marighella, nunca vira tamanha resistência a maus tratos nem tanta bravura.
Recolhido aos presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande pelo seis anos seguintes, ele dirigiria sua energia revolucionária ao trabalho de educação cultural e política dos companheiros de cadeia.
Anistiado em abril de 1945, participou do processo de redemocratização do país e da reorganização do Partido Comunista na legalidade. Deposto o ditador Vargas e convocadas eleições gerais, foi eleito deputado federal constituinte pelo estado da Bahia. Seria apontado como um dos mais aguerridos parlamentares de todas as bancadas, proferindo, em menos de dois anos, cerca de duzentos discursos em que tomou, invariavelmente, a defesa das aspirações operárias, denunciando as péssimas condições de vida do povo brasileiro e a crescente penetração imperialista no país.
Com o mandato cassado pela repressão que o governo Dutra desencadeou contra o comunistas, Marighella foi obrigado a retornar à clandestinidade em 1948, condição em que permaneceria por mais de duas décadas, até seu assassinato.
Nos anos 50, exercendo novamente a militância em São Paulo, tomaria parte ativa nas lutas populares do período, em defesa do monopólio estatal do petróleo e contra o envio de soldados brasileiros à Coréia e a desnacionalização da economia. Cada vez mais, Carlos Marighella voltaria suas reflexões em direção do problema agrário, redigindo, em 1958, o ensaio “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil”, o primeiro de uma série de análises teórico-políticas que elaborou até 1969. Nesta fase visitaria a China Popular e a União Soviética, e anos depois, conheceria Cuba. Em suas viagens pôde examinar de perto as experiências revolucionárias vitoriosas daqueles países.
Após o golpe militar de 1964, Marighella foi localizado por agentes do DOPS carioca em 9 de maio num cinema do bairro da Tijuca. Enfrentou os policiais que o cercavam com socos e gritos de “Abaixo a ditadura militar fascista” e “Viva a democracia”, recebendo um tiro a queima-roupa no peito. Descrevendo o episódio no livro “Por que resisti à prisão”, ele afirmaria: “Minha força vinha mesmo era da convicção política, da certeza (…) de que a liberdade não se defende senão resistindo”.
Repetindo a postura de altivez das prisões anteriores, Marighella fez de sua defesa um ataque aos crimes e ao obscurantismo que imperava desde 1o de abril. Conseguiu, com isso, catalisar um movimento de solidariedade que forçou os militares a aceitar um habeas-corpus e sua libertação imediata. Desse momento em diante, intensificou o combate à ditadura utilizando todos os meios de luta na tentativa de impedir a consolidação de um regime ilegal e ilegítimo. Mas, mantendo o país sob terror policial, o governo sufocou os sindicatos e suspendeu as garantias constitucionais dos cidadãos, enquanto estrangulava o parlamento. Na ocasião, Carlos Marighella aprofundou as divergências com o Partido Comunista, criticando seu imobilismo.
Em dezembro de 1966, em carta à Comissão Executiva do PCB, requereu seu desligamento da mesma, explicitando a disposição de lutar revolucionariamente junto às massas, em vez de ficar à espera das regras do jogo político e burocrático convencional que, segundo entendia, imperava na liderança. E quando já não havia outra solução, conforme suas próprias palavras, fundou a ALN – Ação Libertadora Nacional para, de armas em punho, enfrentar a ditadura.
O endurecimento do regime militar, a partir do final de 1968, culminou numa repressão sem precedentes. Marighella passou a ser apontado como Inimigo Público Número Um, transformando-se em alvo de uma caçada que envolveu, a nível nacional, toda a estrutura da polícia política.
Na noite de 4 de novembro de 1969 – há exatos 30 anos — surpreendido por uma emboscada na alameda Casa Branca, na capital paulista, Carlos Marighella tombou varado pelas balas dos agentes do DOPS sob a chefia do delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Esse Marighella que aprendemos a medir pela firmeza na práxis política era, segundo Paulo Mercadante, um dos raros dirigentes comunistas de sua geração com preocupações intelectuais. Não se limitava aos documentos partidários e tratados marxistas; apreciava literatura brasileira e clássicos do pensamento universal. “Carlos não se apegava a certezas férreas diante das fragilidades humanas. Com ele podíamos nos abrir. Na sua humanidade, distinguia-se daqueles dirigentes que vinham logo com uma citação de Marx para desqualificar os problemas pessoais como debilidades burguesas. Ao expressar-se, ele não recorria aos jargões partidários. Conversava normalmente, não seguia as fórmulas feitas e os maniqueísmos”, acrescenta Mercadante.
Jacob Gorender, que o conheceu em 1945, traça um perfil de Carlos bem semelhante ao apresentado por Paulo Mercadante: “Marighella era um líder revolucionário muito diferente de outros que eu acompanhei na direção. Era um homem fraternal, não tinha nenhum ar de superioridade, nunca se atribuiu méritos pessoais particulares. Quando falava de suas experiências na tortura, na prisão e em outras circunstâncias, só o fazia para ensinar, para alertar os companheiros que não tinham essa experiência. Um homem, um líder, que jamais usava de grosserias, que se interessava pelos problemas pessoais dos companheiros, problemas de alojamento, de dinheiro para comprar comida, para atender a necessidades familiares e assim por diante. Ao mesmo tempo, um homem que dava o exemplo e por isso tinha condições de exigir o cumprimento de tarefas, podia ser rigoroso nas cobranças das tarefas de que os outros companheiros estavam encarregados”.
Carlos Marighella nasceu em um sobrado na Baixa do Sapateiro, em Salvador, no dia 5 de dezembro de 1911, filho de Augusto Marighella, um imigrante italiano, mecânico e simpatizante do anarquismo, e de Maria Rita do Nascimento, negra baiana descendente de escravos sudaneses. As idéias libertárias do pai conformaram-lhe o espírito avesso à discriminação e ao preconceito. Indignava-se com a segregação dos negros. Craque nas peladas e em matemática, adorava escrever poemas e lia, à luz de velas, os jornais que o pai lhe passava. Na última série do curso científico do Colégio Central da Bahia, tirou nota 10 ao responder a uma prova de física com versos. O poema ficou exposto em um mural como exemplo de imaginação criadora.
Em 1932, aos 21 anos, aderiu à Federação Vermelha dos Estudantes, vinculada ao Partido Comunista Brasileiro, abandonando no terceiro ano o curso de engenharia civil na Escola Politécnica da Bahia. “Um sentimento profundo de revolta ante a injustiça social não me permitia prosseguir em busca de um diploma e dedicar-me à engenharia civil, num país onde as crianças são obrigadas a trabalhar para comer”, relembraria três décadas depois. A militância levou-o diversas vezes à prisão. A primeira delas ainda em 1932, quando participava de manifestação pela redemocratização, dissolvida pela polícia do interventor federal no estado, Juracy Magalhães. Nos anos seguintes, Marighella juntou-se ao esforço de tentar organizar, em condições adversas, o PCB baiano.
Mudou-se para o Rio de Janeiro no início de 1936, onde passou a atuar no setor de imprensa e divulgação do partido. O clima era de guerra: após o malsucedido levante comunista de novembro de 1935, Getúlio Vargas desfechou uma violenta perseguição aos opositores do regime, superlotando as cadeias. Luiz Carlos Prestes, inúmeros dirigentes e militantes foram presos e condenados pela Lei de Segurança Nacional.
No 1º de maio de 1936, detido pela Polícia Especial de Filinto Müller, Carlos foi torturado 23 dias. Cumpriu um ano de prisão. Solto, partiu para São Paulo a fim de reerguer o partido e combater a dissidência trotsquista. Aos 26 anos, tornou-se membro do Comitê Estadual. Novamente preso em 1939, queimaram-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiaram-lhe estiletes sob as unhas, arrancaram-lhe alguns dentes e abriram sua testa com uma coronhada. Não cedeu aos algozes.
Numa solitária do Presídio Especial de São Paulo, escreveu o soneto “Liberdade“:
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.