Afonso Henriques de Lima Barreto

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881. Seu pai, o tipógrafo João Henriques, era mestiço, filho de escrava e de um português que nunca lhe reconhecera a paternidade. Amália Augusta Barreto, professora, mãe de Lima, era filha de uma negra da segunda geração de escravos da família Pereira de Carvalho.

João Henriques tinha o sonho de ver o filho com prosperidade e reconhecimento social. Afonso teria nascido, porém, sob um signo ruim. Veio ao mundo numa sexta-feira 13 de maio, dia de Nossa Senhora dos Mártires. Mas o martírio de Lima parece advir mais da época e local de seu nascimento (a retrógrada sociedade brasileira de fins do século 19) que da data supostamente agourenta em que por acaso se deu.

No dia em que completara sete anos de idade, Lima foi levado pelo pai para um passeio pelo Rio de Janeiro. A cidade estava em festa: era a abolição da escravatura. O menino Afonso não tinha muita noção, até aquele momento, do que vinha a ser escravidão. De fato nunca havia visto escravos, já que eles não eram frequentes na cidade do Rio por aquela época, sendo considerados símbolos de provincianismo e atraso, inadequados a um grande centro.

Em meio aos festejos, ecoava pelas ruas uma palavra que viria a se tornar quase sagrada para Lima Barreto: liberdade. Para o menino, parecia que, a partir daquele momento, tudo era permitido, não havia mais barreiras, empecilhos à felicidade. Mas Afonso, órfão de mãe desde o ano anterior, ainda passaria muitos dissabores na vida.

No ano seguinte, 1889, dava-se a proclamação da República. Aos olhos de Lima, este acontecimento não trazia nenhuma alegria como a presente nas ruas do Rio no ano anterior. Pelo contrário: o que se via era a população assustada sem entender direito o que estava acontecendo. Militares tomavam o governo e alardeavam grandes melhorias sociais. Mas estas não surgiram. O poder apenas mudara de mãos.

Os que de alguma forma estavam envolvidos com o regime anterior eram perseguidos, enquanto os bajuladores dos novos donos do poder galgavam altas posições sem esforço ou mérito. João Henriques ficara em uma situação delicada. Era funcionário da Imprensa Nacional e compadre do Visconde de Ouro Preto. Logo os antigos laços com a monarquia, e o estigma decorrente deles, tornariam insuportável para João sua permanência no cargo. Pediu demissão antes que ela lhe fosse imposta.

Em março de 1890, João Henriques conseguiu emprego como escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Seu coração guardava grandes esperanças de o filho se tornar doutor e não passar pelas humilhações e decepções de que ele próprio fora vítima. Com muito esforço, e auxílio de alguns conhecidos ilustres, garantiu ao menino um bom estudo no afamado Liceu Popular Niteroiense e no Colégio Paula Freitas.

Em 1897, Afonso Henriques de Lima Barreto ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Logo de início, deparou-se com o racismo; um veterano diria sobre o recém-admitido: “Que audácia um mulato usar o nome do rei de Portugal!” No curso ainda enfrentaria perseguição de professores e antipatia de boa parte do alunado em virtude de sua cor e também de sua independência de pensamento.

Cedo demonstrou preocupações políticas, tendo inclusive ingressado na chamada Federação de Estudantes. Acabara, no entanto, por abandoná-la em virtude de esta ter se posicionado em favor do regime militar obrigatório.

Por indicação do colega Bastos Tigres, Lima Barreto começou a escrever no jornal estudantil A Lanterna, o qual se definia como “órgão oficioso da mocidade de nossas escolas superiores”. Futuramente viria a escrever para outro A Lanterna (autodefinido como “jornal anticlerical”), deixando clara sua filiação ao Anarquismo. Mas mesmo neste primeiro momento na imprensa estudantil, a pena de Lima dá mostras de sua vocação libertária, manifestada em críticas ferrenhas e ironias demolidoras. Era impressionante ver como aquele rapaz tímido se expressava desenvolta e corajosamente por escrito.

Em 1902 João Henriques enlouqueceu: dormiu são e acordou doente. Trágico. Inexplicável. Afonso se viu forçado a abandonar a Escola Politécnica. Prestou concurso para funcionário civil do Ministério da Guerra, foi aprovado. O ambiente do trabalho desgostava-o. Suas convicções antimilitaristas faziam-no detestar o Ministério. Foi lá, porém, que conheceu o anarquista Domingos Ribeiro Filho que viria a influenciá-lo teoricamente.

Iniciou, no Correio da Manhã, uma série de reportagens sob o título “Os Subterrâneos do Morro do Castelo”. O Morro do Castelo era para Lima um interesse frequente. A modificação da paisagem original do Rio de Janeiro sempre lhe parecera um crime. Vê-se que o escritor foi pioneiro nas preocupações em relação à Ecologia e ao patrimônio histórico. Nestas crônicas para O Correio da Manhã, Lima foi introduzindo elementos ficcionais, já que sua veia literária começava a falar mais alto que a vocação jornalística. Ainda assim sentia falta de uma maior liberdade de criação. Foi aí que, junto com outros intelectuais libertários – como Curvelo de Mendonça, Domingos Ribeiro Filho e Elísio de Carvalho –, Lima fundou a revista Floreal em 1907. Tratava-se de uma publicação com preocupações literárias, filosóficas e políticas que buscava dar voz aos escritores e pensadores autênticos que não se rebaixavam a tornar o texto um adorno social, uma bajulação aos poderosos ou um passatempo inofensivo e alienante. Na revista, Lima Barreto começou a publicar capítulos do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, porém ela acabou não passando do quarto número.

Como publicaria o romance? As editoras brasileiras não o aceitavam… Enviou os originais para Portugal e acabou conseguindo que o editor A. M. Teixeira o publicasse. O livro é agressivo, contundente. Era fácil, na época, identificar as pessoas nas quais Lima havia se baseado para criar seus personagens. As críticas eram direcionadas sobretudo ao Correio da Manhã. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha estava presente toda a redação daquele jornal e também muitas outras figuras conhecidas da sociedade de então. O livro, porém, não ficaria datado nem traria críticas demasiadamente particulares. A narração da trajetória de Isaías Caminha constitui um ataque à imprensa burguesa em geral, ao falso moralismo, ao Capitalismo e à sociedade hierárquica, permanecendo atual mesmo com o passar dos anos.

Lima estava feliz: conseguira publicar. A edição foi posta à venda em dezembro de 1909. Aguardou as críticas que certamente viriam. Se falassem bem, seria ótimo. Caso atacassem o livro, também não haveria problema, pois a polêmica em torno do romance faria com que as idéias presentes nele fossem debatidas. Lima não era homem de temer críticas: negro, anarquista e pobre, recebia-as o tempo todo. Mas ocorreu a única coisa da qual não tinha como se defender: o silêncio.

O boicote ao nome de Afonso Henriques de Lima Barreto se deu principalmente no Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt. Mas não se restringiu a este jornal. Toda a imprensa burguesa, subserviente a Bittencourt e antipática às idéias de Lima, se negou a comentar o romance.

Mesmo assim o escritor conseguiu que, a 11 de agosto de 1911, o Jornal do Comércio iniciasse a publicação, em folhetins, de Triste Fim de Policarpo Quaresma. Trata-se de um romance em que Lima troça do Nacionalismo, personificado na figura ridícula do patriota Policarpo Quaresma. A narrativa retrata militares e políticos como pessoas covardes e sem caráter, caricaturando até mesmo o Presidente Floriano Peixoto. Mas o ousado romance alcançou pequena repercussão naquele momento.

Em setembro de 1912, o escritor publicava Aventuras do Doutor Bogóloff, obra mais explicitamente humorística, mas também dotada de caráter crítico. Bogóloff é um anarquista russo que se envolve em várias aventuras pelo Brasil, sempre se admirando dos curiosos hábitos locais e de nossa sociedade de valores tão deturpados e esdrúxulos. Mais tarde, em 1918, Lima escreveria crônicas para o jornal libertário A Lanterna com o pseudônimo de Dr. Bogóloff.

Em 15 de março de 1915, o jornal A Noite inicia a publicação, em folhetins, de Numa e a Ninfa. Esta narrativa ataca mais diretamente os políticos, a corrupção e a moral sexual burguesa com suas falsidades. Chega a conter personagens que fazem vista grossa em relação a casos extraconjugais das esposas, visando a melhores posições no governo. O texto explicitamente retrata as classes dominantes como hipócritas e anti-éticas.

1916 seria um bom ano para Lima Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma foi publicado em livro: uma bela edição de capa dura. Desta vez o romance chamou a atenção de críticos e chegou a ser elogiado. Neste formato suas qualidades literárias ficaram mais visíveis. Com o texto reunido num só volume, ficam mais explícitas a coerência interna e a coesão da narrativa. O livro divide-se em três partes com aproximadamente a mesma extensão, e que correspondem às tentativas de reforma empreendidas pelo personagem principal. Na primeira, Policarpo Quaresma tenta empreender uma reforma através da cultura, buscando as raízes da brasilidade no folclore e nos costumes das populações autóctones. Descobre que quase todas as danças, músicas e festas populares locais tinham origem estrangeira. Conclui que até mesmo o idioma falado no Brasil veio de fora e portanto deveria ser substituído. O trecho termina com Policarpo indo parar no hospício, em virtude de suas manias nacionalistas. Fica demonstrado que as culturas se interpenetram e que a própria idéia de uma cultura nacional é, em última análise, inconcebível.

Na segunda parte do romance, Policarpo tenta empreender uma regeneração da pátria através da agricultura, mas se depara com a politicagem e as injustiças características da organização social vigente. Vê que o Brasil não é a terra abençoada por Deus em que “em se plantando tudo dá”. Fica demonstrado que iniciativas baseadas no ufanismo e na crença da superioridade natural de qualquer região são incapazes de corrigir problemas locais, por estes terem raízes na estrutura social.

Ao fim do livro, o personagem principal – movido por seu estúpido Nacionalismo – alia-se ao Presidente Floriano Peixoto para combater a Revolta da Armada (1893). Aí é que se dará seu triste fim anunciado no título do livro, e que explicita toda a hediondez do patriotismo.

Aliás, Lima Barreto sempre demonstra em seus escritos uma aversão ao Nacionalismo. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, quando o personagem é preso injustamente murmura cheio de ódio: “A pátria…”. E o próprio Policarpo Quaresma acabaria concluindo que a pátria é “um mito, (…) um fantasma, (…) uma ilusão, uma idéia (…) que nascera da amplificação da crendice dos povos grego-romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para que eles não perseguissem os descendentes”. Tal posicionamento é coerente com o Internacionalismo assumido pelos anarquistas, entre os quais Lima Barreto se inclui. Apesar dos riscos, o escritor chegava, em alguns momentos, a explicitar sua filiação ideológica. No livro de observações clínicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil consta que, em sua primeira estada no hospício em agosto de 1914, declarara que “adota as doutrinas anarquistas e quando escreve deixa transparecer, debaixo de linguagem enérgica e virulenta, os seus ideais”.

Voltaria a ser internado em 1917. Neste mesmo ano, em carta a Rui Barbosa datada de 21 de agosto, veio a se declarar candidato à Academia Brasileira de Letras na vaga de Souza Bandeira. A candidatura, porém, não foi sequer considerada. No mês seguinte surgiu, em livro, Numa e A Ninfa, bem como a segunda edição de Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Barreto continuou ousado e desafiador. Apesar de sua delicada posição de funcionário público e arrimo de família, lançou, na revista ABC, o texto que viria a ser conhecido como Manifesto Maximalista. Trata-se uma defesa da insurreição popular, e de um elogio da então recente Revolução Russa, de que os anarquistas também tiveram participação, e a qual se acreditava pudesse conduzir à autogestão generalizada. Sempre coerente, Lima Barreto suspenderia a colaboração a ABC em 1919 pelo fato de ter sido publicado um artigo contra a raça negra, nessa revista.

Insistente, Lima voltou a se candidatar à Academia Brasileira de Letras em 1919, desta vez na cadeira de Emílio de Menezes. Como era de se esperar tendo em vista o caráter conservador que a ABL manifestava desde o início, ele perde. No ano seguinte, apresentou Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá como candidato ao prêmio da Academia Brasileira de Letras para melhor livro publicado no ano anterior. Alcançou apenas uma menção honrosa.

Candidatou-se ainda uma 3ª vez à ABL, talvez como pura provocação. Tanto sabia da impossibilidade de a conservadora academia conceder-lhe a vaga de João do Rio que, pouco tempo depois, retirou a candidatura.

Na tarde de 1º de novembro de 1922, dia de Todos os Santos, o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto morria de gripe toráxica e colapso cardíaco. Para o velório, à noite, começaram a chegar, tristes, os conhecidos do escritor: gente simples do subúrbio, amigos humildes de botequins, compadres e afilhados. Surgiu no meio deles um homem desconhecido de todos com um pequeno ramalhete de perpétuas. Depois de espalhá-las respeitosamente no caixão, descobriu-lhe o rosto e – de lágrimas nos olhos – beijou-lhe a testa. Quando perguntaram ao homem sua identidade, respondeu ser apenas mais um que leu e amou Lima Barreto, este grande amigo dos desvalidos.

Que Lima Barreto seja sempre valorizado pelo povo que tanto amou. Que sua escrita seja vista como o que de fato é: uma obra de arte corajosa e empenhada em gerar entendimento entre os seres humanos, contribuindo para dar voz àqueles excluídos que a sociedade autoritária acha indigno retratar.
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(texto escrito por Winter Bastos)