Os neo-anarquistas: por um futuro primitivo
Aproveitando-se do crescimento das ações antiglobalização, grupos ainda minoritários de anarquistas ou de neo-anarquistas têm provocado os incidentes mais violentos nas últimas manifestações em vários países da Europa, América do Norte e, mais recentemente, no Brasil. Começaram em Seattle, em 1999, e Gênova, em 2001, onde os chefes de Estado ou seus representantes compareceram a fim de tratar de assuntos de interesse universal, deu-se um tremendo enfrentamento dos neo-anarquistas com as forças da ordem. O mentor ideológico oculto deles é John Zerzan, um teórico extremista norte-americano totalmente avesso às conquistas da sociedade tecnológica, a mais autêntica encarnação humana da anticivilização.
Os atentados
Os anarquistas suicidam-se a cada ano e a cada ano renascem dentre as cinzas… Porque a ressurreição constante do anarquismo baseia-se em que sempre encontram adventícios que buscam a popularidade barata… parece-me natural que esta caricatura burlesca maripose ao redor do movimento verdadeiro
Engels Carta a Becker, 16/12/1882
Viviam como os danados da terra. Os anarquistas do século 19 eram vistos como malditos. E agiam de acordo. Entocados em porões ou em sórdidos sótãos, em vielas ou em ruas suspeitas das principais capitais, sempre sob a vigilância da polícia, dali só saiam para praticar atentados espetaculares.
Corajosos, meio doidos, alguns deles portadores de doença gravíssima (Gravilov Princip e os quatro assassinos sérvios que mataram o arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa em Sarajevo, em 1914, eram tuberculosos), expunham-se inteiramente na hora da ação, sem máscara nem medo. Depois disso subiam ao patíbulo cantando e gritando pela liberdade ou padeciam por anos no calabouço.
Atacar os poderosos era o seu destino, fossem eles um autocrata como o czar Alexandre II, da Rússia, morto pelo narodnik Ignatei Grinevitskii, em 1881, ou um presidente democraticamente eleito, como McKinley, nos Estados Unidos, morto por Leon Czolgosz, em 1901. Nem Elizabeth Wittelsbach, a imperatriz da Áustria e da Itália, a Sissi, a mulher mais bela do mundo inteiro, escapou deles. Luigi Lucheni, um paupérrimo anarquista italiano, a matou com um estilete em Genebra, em 1898.
Homens perdidos
Sergio Netcháiev, um dos mais conhecidos e temidos anarquistas russos, o fundador da sociedade secreta A Justiça do Povo, morto no cárcere em 1882, um sujeito que punha medo até em Bakunin, definiu o seu métier, no que ficou registrado como o Manual do Terrorista, como coisa de homens perdidos. Não tinha família ou amigos, apenas os companheiros de luta, e, não era para menos um movimento onde alguns indivíduos isolados tomavam a si lutar ao mesmo tempo contra Deus e contra o Estado, não podia almejar o apoio de mais ninguém no mundo. E assim foi.
Mesmo os líderes bolcheviques Lenin e Trotsky, no transcorrer da Guerra Civil de 1918-1920, entre vermelhos e brancos, ordenaram que os fuzilassem às pencas quando os anarquistas russos liderados por Makhno rejeitaram submeter-se ao regime de Moscou.
Durante a Guerra Civil espanhola de 1936, para pavor dos republicanos e dos seus aliados comunistas, eles formaram quadrilhas de criminosos, Los incontrolables, volantes que percorriam os campos pilhando e assassinando fazendeiros. Disparavam mesmo nos seus companheiros como Buenaventura Durruti, um formidável colosso de destemor e violência, quando este procurou deter o estrago devastador que os autonomistas, como os anarquistas se auto-designavam, faziam à imagem da causa.
O Unabomber
O antigo hábito de muitos deles agirem como lobos solitários, isolados em recantos perdidos da floresta de onde só saem ocultos para ações de terror, foi retomado nos Estados Unidos mais recentemente por Theodor Kaczynski, o Unabomber.
Até 1969 ele exercia uma promissora carreia de matemático na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Abandonando o campus, instalou-se anonimamente em Montana, um Estado de gelos, lobos e ursos, que abriga muita gente esquisita, numa cabana sem luz ou encanamento. De lá, por 17 anos seguidos, desafeto do mundo, enviou burocraticamente 16 cartas-bomba para universidades de nove Estados (e também para Bill Gates), matando três pessoas e ferindo outras 23. Só cessou de atormentar suas possíveis vítimas com as cartas mortíferas quando dois jornais da grande imprensa norte americana, o New York Times e o Washington Post, para aplacá-lo, publicaram o seu manifesto. No ano de 1995, simultaneamente ao atentado de Oklahoma, praticado à bomba pelo anarquista de direita Timothy McVeigh, com 168 mortos e 500 feridos, veio a público o ensaio de “A sociedade industrial e o seu futuro”, no qual Kaczynski danava a moderna tecnologia em bloco. A frase inicial já dizia tudo:
A Revolução Industrial e suas consequências foram um desastre para a raça humana
John Zarzan
Se Netcháiev viu Bakunin como seu mentor, Kraczynski, o Unabomber, teve-o na excêntrica figura de John Zarzan, um dos mais representativos nomes do anarco-primitivismo teórico dos nossos dias. Vivendo num trailer em Eugene, uma cidade do Oregon, um refúgio de anarquistas, Zarzan, de resto uma pessoa afabilíssima, é o principal mentor intelectual da guerra que hoje os seguidores da bandeira negra, e dos que não têm bandeira nenhuma, movem no mundo inteiro não mais contra o padre ou o rei, como os antigos libertários faziam, mas contra a tecnologia, causadora, segundo ele, da miséria psicológica das massas. É bem possível que ele seja o reformador social mais reacionário que pisou na face da Terra nos últimos três ou quatro mil anos.
A agricultura foi o mal de tudo
Para Zarzan todas as desgraças da humanidade deram-se a partir do neolítico com a expansão da agricultura, visto como o pecado original da sua concepção histórico-social. Com o plantio vieram as regras, a preocupação com o templo, ainda que cíclico, as leis, o governo, a religião, a cultura, tudo aquilo que no transcorrer dos séculos tornou-se um envoltório opressor da natureza livre do homem. Não se trata de implantar leis ambientalistas ou restrições ecológicas, Zarzan convocou os seus adeptos para, seja onde for, destruir o sistema industrial na sua totalidade.
A rejeição à evolução
O simples fato da humanidade não ter evoluído muito durante os milhares de anos antes da nossa época, era sinal evidente, para ele, de que ela rejeitara o progresso em bloco. Numa leitura que fez, bem sua, da antropologia e da arqueologia, acreditou que homem de Neandertal, que viveu entre 200 a 30 mil anos atrás, tinha a mesma inteligência do homem de hoje. Logo, se ele não prosperou foi porque conscientemente não quis. A sociedade moderna, racionalista e tecnológica assoma-lhe, pois, é de se supor, resultado de uma conspiração de burgueses e de engenheiros. O paraíso perdido de Zarzan era o paleolítico, período soberbo, idade de ouro, onde todos eram livres, sem fé nem lei, saindo meio nus pelos matos e campos em alegres bandos catando pitangas e tudo o mais que a generosa natureza era tão pródiga.
Um futuro primitivo
Bem longe de deixar-se infantilizar e tornar-se dependente da desgraçada tecnologia que hoje invade tudo, aceitando a dominação dela numa espécie de nova servidão, o homem contemporâneo, segundo o profeta ludita, tem que rebelar-se. O ataque concentrado, vandálico, que os seguidores de Zarzan movem contra aos símbolos, às instituições e figuras políticas que representam os estados tecnológicos do nosso tempo, indicam o começo da guerra. Primeiro com a batalha de Seattle, em 1999 e em seguida a de Gênova, em 2001, alastrando-se para vários outros países, mostram que estamos recém assistindo, incrustado no movimento antiglobalização, os primeiros assaltos dos tecnofóbicos para uma possível implantação de uma sociedade anarco-paleolítica.
Quem até o momento melhor transpôs o ideário de Zarzan para o cinema foi o diretor James Cameron no filme Avatar, estreado em 2009, de repercussão internacional. Na cena final, numa sensacional batalha, os equipamentos tecnológicos de guerra mais sofisticados da atualidade são derrotados por um ataque maciço de pássaros e feras pré-históricas, demonstrando a inequívoca força da era passada, perenemente “autêntica”, em comparação com a sociedade de hoje “artificial”, tendente ao fim e a virar poeira na história.