A Democracia
A palavra democracia, que tem origem grega – demos significando povo e kratia significando governo ou poder – tão utilizada durante a História, pode ter hoje os mais diferentes – e inclusive antagônicos – significados. Falam de democracia hoje, desde os anarquistas até os políticos mais conservadores. Talvez por isso a palavra seduza elementos da esquerda mais institucional, que acreditam que os seus partidos sejam um elemento essencial nessa tal democracia.
Entre os anarquistas, a crítica da democracia sempre foi uma crítica da democracia parlamentar, da maneira como ela surgiu dentro das sociedades com aspectos fortemente retrógrados. Quando os anarquistas utilizam a palavra democracia de maneira positiva, não se referem a ela como expressão dos partidos políticos e do sufrágio universal. A democracia representativa seria, assim como mostraram amplamente os anarquistas, uma forma de entregar a um terceiro – o político profissional – o direito que cada um de nós tem de fazer política e de participar nas decisões diretamente. Como diz Malatesta: “Governo significa delegação de poder, ou seja, abdicação da iniciativa e da soberania de todos nas mãos de alguns.” O governo seria, portanto, um elemento centralizador que tiraria do povo a capacidade de tomar as decisões políticas. Assim, o parlamento criaria uma distinção entre os governantes e os governados, aumentando progressivamente a distância entre uns e outros.
Pelos próprios exemplos da História, podemos observar que mesmo os governos mais “progressistas” têm uma enorme distância da base, de acordo com sua burocracia, e seus governantes têm cada vez mais a necessidade de permanecer no poder – e acabam corrompidos por esse próprio poder. Como escreveu Kropotkin:
“Os parlamentos (…) não fizeram senão concentrar os poderes nas mãos do governo. Funcionalismo para tudo – tal é a característica do governo representativo. Desde o princípio deste século se fala em descentralização, autonomia, e não se faz senão centralizar, matar os últimos vestígios de autonomia.”
A democracia representativa (parlamentar) falharia em dois pontos: primeiro por centralizar as decisões no Estado, que exerceria o monopólio do poder; depois, pela democracia representativa tratar somente da esfera política e não se estender às outras esferas.
O sentido de democracia direta, que alguns anarquistas consideram ser o federalismo, é o seguinte: participação efetiva nas tomadas de decisão. Isso não significa uma participação meramente consultiva, mas realmente deliberativa nas decisões relativas a cada um.
Na democracia direta, as decisões não são inteiramente delegadas a uma outra pessoa – o que acontece na democracia representativa – mas são tomadas por cada grupo, no âmbito do trabalho ou no âmbito das comunidades. Uma efetiva democracia em que o poder emana realmente do povo e não de uma classe de representantes qualquer, que toma as decisões em nome do povo. A possibilidade de uma instância decisória maior e a possibilidade de relação entre as comunidades e os diferentes ramos de trabalho constituiriam o federalismo que Proudhon defendera na década de 1860.
O federalismo abriria as portas para uma instância decisória descentralizada que balancearia, como acreditava Proudhon, a autoridade e a liberdade. Possibilitaria, dessa forma, a tomada de decisões fora do Estado. Escrevia ele que:
“Federação (…) quer dizer pacto, contrato, tratado, convenção, aliança, etc.; é uma convenção pela qual um ou mais chefes de família, uma ou mais comunas, um ou mais grupos de comunas ou Estado, obrigam-se recíproca e igualmente uns em relação aos outros para um ou mais objetivos particulares, cuja carga incumbe especial e exclusivamente aos delegados da federação.”
“A idéia de federação é certamente a mais alta à qual se levou até aos nossos dias o gênio político. (…) Ela resolve todas as dificuldades que suscita o acordo Liberdade e Autoridade. Com ela não temos mais de recear afundarmo-nos nas antinomias governamentais (…).”
Dessa forma, as diversas comunidades tomariam as suas decisões em nível local, passando as decisões a um representante – que seria escolhido por membros da própria comunidade e teria mandato revogável – que se encarregaria de levar as decisões de sua comunidade para uma instância maior de decisão. A grande diferença em relação ao sistema político representativo é que esse representante seria somente um elo de transmissão entre a comunidade e uma instância decisória maior, e não decidiria pela comunidade que representa. Os representantes devem responder diretamente para a comunidade orgânica em que vivem. Os partidos políticos representariam basicamente interesses de classe, e, na medida em que tornam-se necessários, a organização anarquista da sociedade terá falhado.
Baseado em escritos de Felipe Corrêa e Noam Chomsky