A Distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia na obra de Érrico Malatesta
Resumo: Este artigo discute a distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia na obra do anarquista italiano Errico Malatesta, uma de suas contribuições mais significativas à Filosofia e às Ciências Sociais, particularmente ao campo epistemológico e teórico-metodológico. Estabelecida com base na crítica das noções de socialismo/anarquismo científico, e relacionando-se, mais ou menos criticamente, à contribuição de teóricos notáveis como Max Weber e Karl Marx, essa distinção visa fornecer um ferramental conceitual para que teoria e prática possam ser conciliadas adequadamente. A ciência é definida por Malatesta, em seu sentido social, como uma forma de produção e sistematização de conhecimentos passados e/ou presentes, históricos e/ou teóricos, estruturais e/ou conjunturais, que explicam realidades sociais e nelas possuem respaldo. Ela possui condições de explicar a ocorrência e a repetição de um ou vários fatos sociais e pode realizar predições futuras sobre aquilo que obrigatoriamente decorre dos fatos passados e presentes. A doutrina/ideologia é um conjunto de princípios que possuem como fundamento posições ético-valorativas e que estabelecem objetivos normativos pautados na aspiração de um conjunto de agentes sociais. Ela pode interagir com a ciência no que diz respeito ao ferramental utilizado para explicar a realidade social mas, principalmente, proporciona um quadro de referência capaz de nortear o julgamento dessa realidade, oferece elementos para que se pense como ela deveria ser e que se concebam posições políticas, idéias e ações para mantê-la ou modificá-la. Distinguir ciência e doutrina/ideologia constitui um passo fundamental para: 1.) a busca antidogmática de métodos de análise e teorias sociais que possam explicar de maneira mais adequada a sociedade; 2.) pensar o lugar das doutrinas/ideologias políticas nos processos de mudança e transformação social; 3.) aprimorar as práticas políticas que apontam para objetivos estabelecidos sob pressupostos ideológico-doutrinários e que, por meio de um conhecimento científico da realidade, buscam as melhores estratégias e táticas para chegar de um ponto a outro.
Palavras chave: Errico Malatesta, epistemologia, ciência, doutrina/ideologia, anarquismo.
* Artigo elaborado como contribuição ao “Colóquio Internacional Ciência e Anarquismo” (11 a 14 de novembro de 2013, São Paulo) [https://cienciaeanarquismo.milharal.org/], promovido pela Biblioteca Terra Livre [http://bibliotecaterralivre.noblogs.org/]. Eixo: Concepções anarquistas da ciência.
** Editor pós-graduado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestre pela Universidade de São Paulo (EACH), no programa de Mudança Social e Participação Política. Membro da Comissão Editorial da Faísca Publicações e do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA). E-mail: felipecorreapedro@gmail.com.
Introdução
Errico Malatesta (1853-1932) foi um importante anarquista italiano, que contribuiu, em teoria e prática, com o desenvolvimento do anarquismo em muitos países; militou em distintas localidades da Europa, das Américas, da África e da Ásia. Filho de uma família de comerciantes com algum recurso, estudou no Liceu de Santa Maria Capua Vetere, localidade de seu nascimento, ingressando posteriormente na Faculdade de Medicina, da Universidade de Nápoles. Os contratempos, em parte de ordem política, fizeram-no abandonar o curso, vivendo, a partir de então, de biscates, dentre eles os ofícios de mecânico e eletricista. Ainda jovem, acreditou por algum tempo no republicanismo de Giuseppe Mazzini, mas logo o abandonou, sendo convertido ao anarquismo entre 1871 e 1872 – em cujo processo Mikhail Bakunin foi determinante –, doutrina que defendeu até sua morte em Roma. Dos quase 80 anos de vida, mais de 60 Malatesta foi anarquista. Acompanhou, por isso, um período amplo do anarquismo em distintas localidades, os fluxos e refluxos dos movimentos populares e do próprio anarquismo, assim como diferentes idéias e práticas hegemônicas que o permearam nesse período. Criou e participou de organizações anarquistas, organizações e movimentos de massas, insurreições e iniciativas que envolveram a propaganda escrita e oral. Preso diversas vezes, passou praticamente 10 anos de sua vida nas prisões. (Fabbri, 2010; Nettlau, 2008, 2012; Richards, 2007b)
Qualquer investigação teórica e/ou histórica da obra de Malatesta deve ser realizada cuidadosamente, sem apontar conclusões demasiadamente definitivas. Isso porque suas obras completas não estão ainda disponíveis ao público; os escritos aos quais se possui acesso constituem, portanto, apenas parte de sua produção. Se nem em italiano as obras completas estão disponíveis[1], nos outros idiomas o acesso é bem limitado. Outro fator relevante é que Malatesta nunca foi, e nem pretendeu ser, um grande teórico. Seus escritos tiveram como função, principalmente, a propaganda anarquista; artigos de jornais e material de divulgação/vulgarização das propostas anarquistas constituem a maior parte de sua produção.
Entretanto, uma análise mais detida da obra malatestiana disponível evidencia que o autor, mesmo não tendo a erudição de um Bakunin ou um Piotr Kropotkin, possui contribuições relevantes, não somente no que tange ao anarquismo e suas estratégias[2], mas também ao campo da Filosofia e das Ciências Sociais, em especial suas reflexões sobre epistemologia, método de análise e teoria social.[3]
Seu discípulo Luigi Fabbri afirmou, nesse sentido, que Malatesta
dedicou muito de seu tempo para acompanhar as correntes intelectuais, não apenas as dos indivíduos de ideologia e prática anarquista em diferentes países, mas também dos desenvolvimentos do pensamento filosófico e científico contemporâneo, ao qual dedicou atenção e grande interesse. (Fabbri, 2010)
Talvez, justamente, por conhecer os debates filosóficos e científicos de seu tempo, por não estar diretamente vinculado às discussões acadêmicas e por teorizar muitas vezes sobre suas próprias observações, Malatesta tenha desenvolvido posições relativamente inovadoras. Desde uma perspectiva filosófica e científica, Malatesta pode ser considerado um homem do século XX, em alguma medida “a frente de seu tempo”, distinguindo-se, por exemplo, de Kropotkin, apenas 10 anos mais velho e cuja produção nesses campos vincula-se, em grande medida, às posições majoritárias do século XIX.
O presente artigo tem como propósito, a partir da limitada obra disponível do autor e mesmo com suas complicações[4], elaborar uma análise criteriosa de uma de suas contribuições mais relevantes ao campo epistemológico e teórico-metodológico: a distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia. Assim, não se pretende aprofundar a discussão sobre o anarquismo e suas estratégias, mas abordar uma questão que oferece elementos para que se estabeleçam os limites de uma conceituação adequada do anarquismo e para que se reflita acerca de sua relação com o campo científico.
A contribuição de Malatesta aqui discutida parece ser não somente mais adequada que a de seus contemporâneos, mas algo que, como parte de um ferramental analítico mais amplo, pode auxiliar a compreensão do mundo contemporâneo e subsidiar reflexões acerca das maneiras mais adequadas de nele intervir.
A distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia
Para a distinção das categorias agora abordadas, o ponto de partida de Malatesta é a noção de “socialismo/anarquismo científico” que, surgida durante o século XIX, avançou pelo século XX, tanto no campo do marxismo[5] como do anarquismo[6]. Ainda que a concepção marxista de “socialismo científico” e a noção kropotkiniana de “anarquismo científico” tenham diferenças substantivas, apoiando-se em elementos teórico-metodológicos distintos, elas possuem uma similaridade: pretendem dar à doutrina político-ideológica do socialismo, ainda que em diferentes correntes, um caráter científico.
Ao passo que, em grande medida, desde Marx e Engels, o marxismo vem insistindo em manter esse vínculo socialismo-ciência, o debate epistemológico, metodológico e teórico do anarquismo, tomando em conta produções anteriores e posteriores às de Kropotkin, variou significativamente.[7] O fato é que, sendo Kropotkin, sem dúvidas, o clássico mais difundido entre os anarquistas do século XX, suas posições, dentre as quais se encontra a acima mencionada, tiveram impacto considerável. Foi com os continuadores dessas posições, assim como com os marxistas, que Malatesta debateu, buscando demonstrar que esse vínculo socialismo-ciência estaria equivocado. Segundo ele,
o cientificismo (não digo a ciência) que prevaleceu na segunda metade do século XIX produziu a tendência de considerar verdades científicas, ou seja, leis naturais e, portanto, necessárias e fatais, o que era somente o conceito, correspondente aos diversos interesses e às diversas aspirações, que cada um tinha de justiça, progresso etc., da qual nasceu “o socialismo científico” e, também, o “anarquismo científico” que, mesmo professados por nossos grandes representantes, sempre me pareceram concepções barrocas, que confundiam coisas e conceitos distintos por sua própria natureza. (Malatesta, 2007a, pp. 39-40)
Para Malatesta, esse vínculo, base das noções de socialismo e anarquismo científico, constitui uma confusão de categorias que, em realidade, são distintas e não podem ser tratadas como se fossem uma só. Em muitos casos, argumenta Malatesta (2007a, p. 39), a noção científica, fundida ao socialismo/anarquismo, seria somente “o revestimento científico com o qual alguns gostam de encobrir seus desejos e vontades”; a utilização do adjetivo “científico” constituiria, na maior parte dos casos, tão-somente uma base para tentativas de autolegitimação.
Partindo dessa crítica, Malatesta defende a necessidade de definir e distinguir duas categorias fundamentais que, ainda que se relacionem, não podem ser reduzidas a uma única: ciência e doutrina/ideologia.
A ciência é a compilação e a sistematização do que se sabe e do que se acredita saber; enuncia o fato e trata de descobrir sua lei, ou seja, as condições nas quais o fato ocorre e necessariamente se repete. […] A missão da ciência é descobrir e formular as condições nas quais o fato necessariamente se produz e se repete: ou seja, é dizer o que é e o que necessariamente deve ser.
O anarquismo é, distintamente, uma aspiração humana, que não se funda em nenhuma necessidade natural verdadeira ou supostamente verdadeira, mas que poderá se realizar segundo a vontade humana. Aproveita os meios que a ciência proporciona ao homem na luta contra a natureza e contra as vontades contrastantes; pode tirar proveito dos progressos do pensamento filosófico quando eles servirem para ensinar aos homens raciocinar melhor e distinguir com maior precisão o real do fantástico; mas não se pode confundi-lo, sem cair no absurdo, nem com a ciência e nem com qualquer sistema filosófico. (Malatesta, 2007a, pp. 41-43)
Partindo destes excertos, pode-se afirmar que, na concepção de Malatesta, ciência e anarquismo são coisas distintas.
A concepção malatestiana de ciência implica uma noção de que seu objeto está no passado e no presente; daquilo que foi e/ou que é. Ela toma por base fenômenos que envolvem a vida natural e social, desde um ponto de vista teórico e/ou histórico, estrutural e/ou conjuntural, e estabelece os marcos para uma explicação desses fenômenos. A capacidade de generalização, ou seja, da explicação de um fenômeno ou conjunto de fenômenos, constitui um de seus aspectos centrais. A ciência nunca tem por objeto o futuro; ela pode, no máximo, realizar predições sobre aquilo que, baseado nas análise do que foi e do que é, necessariamente será, como decorrência dessa interpretação passada e presente.
Quando reflete sobre o anarquismo, Malatesta, na realidade, aborda um elemento que está contido em uma categoria mais ampla, que pode ser definida pelas categorias doutrina e/ou ideologia, que é aqui abordada por meio de uma categoria-síntese: doutrina/ideologia.[8]
A doutrina/ideologia oferece um quadro de referência pautado em um conjunto de valores e numa noção ética que proporciona um ferramental para a análise da realidade passada e presente, estrutural e conjuntural, mas que também permite julgar essa realidade, oferecendo elementos para que se pense, a partir daquilo que foi e que é, aquilo que deveria ser. Ou seja, a doutrina/ideologia oferece uma base valorativa que permite julgar e orientar posições políticas, idéias e ações no sentido de manter ou modificar o status-quo, em um sentido normativo.[9]
Malatesta considera o anarquismo uma doutrina/ideologia pautada que, em aspirações humanas, afirma aquilo que a sociedade deveria ser, posição ético-valorativa de um devir que está para além do campo científico. Capitalismo e Estado devem ser destruídos, dando lugar a uma sociedade sem classes, exploração e dominação, não porque, por meio de uma análise científica do atual sistema de dominação constata-se que esse é o fim natural da evolução da sociedade, rumo a um telos conhecido, mas porque, segundo valores e noções éticas e a partir de uma posição normativa considera-se que a sociedade poderia ser melhor e mais justa do que atualmente é, e que a ação humana, mesmo dentro dos limites estruturais, deveria ser utilizada para impulsionar uma transformação revolucionária dessa sociedade.
Esse objetivo, que se poderia chamar “finalista”, não decorre de uma predição necessária daquilo que obrigatoriamente deve ser, e nem constitui uma necessidade verdadeira de uma decorrência normal do desenvolvimento do atual sistema de dominação; trata-se de uma possibilidade desejada, de algo que se considera melhor e mais justo do que aquilo que está dado.
Malatesta, Weber e Marx: teoria e prática
Essa distinção realizada por Malatesta entre ciência e doutrina/ideologia parece antecipar, em alguma medida, a conhecida distinção weberiana entre os conceitos de ciência e política.
Para Max Weber (2010, pp. 17; 96; 19), a ciência “não tem como ensinar a ninguém sobre o que deve, somente sobre o que pode e – eventualmente – sobre o que quer”; a ciência esclarece aquilo que existe. A função da ciência é, portanto, conhecer, e sua própria história constitui “uma alternância constante entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos mediante uma construção de conceitos […] e a construção de novos conceitos sobre a base assim modificada”. Para ele, a ciência afirma o que é, e não o que deveria ser.
A política, em Weber (2010, pp. 25; 22; 20), possui como fundamento a “exposição de ideais”; ou seja, ela apóia-se, necessariamente, em um porvir, que se encontra no futuro, o qual norteia mediações valorativas e tomadas de posições em relação a distintas questões práticas: o agente político pode “agir como mediador entre opiniões opostas dadas” ou “tomar partido por uma delas. Mas isso nada tem a ver com a ‘objetividade’ científica.” A política envolve um posicionamento não somente valorativo, mas também volitivo e normativo de agentes sociais com interesses futuros, formulados sobre “critérios de valor reguladores [que] podem e devem ser objeto de controvérsia”; ela não pode, portanto, ser resolvida “com base em considerações meramente técnicas”.
Ao passo que a ciência permite conhecer teoricamente uma realidade como ela é, a política envolve um posicionamento concreto que diz respeito às relações de poder e sobre como essa realidade deveria ser.
A distinção conceitual de Malatesta entre as categorias ciência e doutrina/ideologia poderia subsidiar críticas de que ele defenderia uma cisão entre teoria e prática, a neutralidade da ciência e/ou do cientista, entre outras críticas que são freqüentemente endereçadas a Weber, em geral por marxistas, e muitas vezes sem fundamento.[10]
Na própria obra de Marx, podem-se distinguir, de maneira bastante clara, suas contribuições teórico-metodológicas e suas proposições político-doutrinárias. Embora muitas vezes interpretadas ou reivindicadas como parte de um mesmo projeto, elas são coisas distintas e assim devem ser consideradas. Utilizando as categorias malatestianas, parece claro que, nos escritos de Marx, há diferenças marcantes entre a análise histórica – e, portanto, pertencente ao campo científico – da Comuna de Paris, em A Guerra Civil na França (2008), e sua análise teórico-histórica – também pertencente ao campo científico –, dos fundamentos do capitalismo em O Capital (1985), e suas proposições político-ideológicas – pertencentes ao campo doutrinário/ideológico – presentes no Manifesto Comunista (2010).
Se diversos intérpretes atribuíram, por exemplo, à Guerra Civil na França uma contribuição político-ideológica, de como se deveria processar uma transformação revolucionária encabeçada pela classe trabalhadora[11], eles não fizeram mais do que, ainda utilizando as categorias malatestianas, transformar ciência, uma análise daquilo que foi, em doutrina/ideologia, uma proposição daquilo que deveria ser. E as próprias posições de Marx no seio da Primeira Internacional em 1872, um ano após a Comuna e a Guerra Civil, confirmam essa afirmação.[12] Mesmo que a análise daquilo que foi e/ou é seja imprescindível para se propor aquilo que deveria ser, não se trata da mesma coisa, inclusive na obra marxiana.
Se a crítica marxista a Weber é facilitada por suas posições políticas conservadoras e por sua prioridade na produção teórico-científica em relação à prática política[13], a condição de Malatesta é bem diferente.
Malatesta foi um homem muito mais dedicado à prática política do que à produção teórico-científica. Ele participou, com Bakunin, da Aliança da Democracia Socialista, em 1872, e de uma tentativa de rearticulação dessa organização política em 1877, encabeçada por Kropotkin, criou e animou o Partido Revolucionário Socialista Anarquista, de 1891, o Partido Anarquista de Ancona, de 1913 e a União Comunista Anarquista Italiana / União Anarquista Italiana de 1919/20. Foi membro da seção italiana da Primeira Internacional, a partir de 1871; fundou os primeiros sindicatos revolucionários na Argentina, no fim dos anos 1880; participou de greves na Bélgica, em 1893, de protestos contra o aumento do pão na Itália, em 1898; contribuiu com a União Sindical Italiana (USI); participou da greve geral e da Semana Vermelha de 1914, na Itália; articulou a esquerda antifascista na Aliança do Trabalho, no início dos anos 1920. Participou, de armas à mão, das insurreições de Apulia, em 1874, de Benevento, em 1877, e foi preso mais de uma dezena de vezes. (Fabbri, 2010; Nettlau, 2008, 2012; Richards, 2007b)
Não se pode dizer que, ao defender essa distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia, Malatesta estivesse pregando qualquer tipo de “cisão entre teoria e prática”; suas posições foram elaboradas exatamente no sentido de proporcionar uma compreensão mais adequada da realidade para, a partir dela, conceber as melhores maneiras de intervir, promovendo o avanço do programa anarquista, rumo aos objetivos por ele estabelecidos. Deve-se, ainda, adicionar que Malatesta também não sustentou a neutralidade da ciência ou qualquer posição que permita aproximá-lo do positivismo.[14]
Malatesta possui uma noção clara da relação entre ciência e doutrina/ideologia, e a demonstra em suas reflexões acerca do conhecimento científico da realidade social e do anarquismo. Para ele, métodos de análise e teorias sociais pertencem ao campo científico: buscam subsidiar um conhecimento da realidade assim como ela é; o anarquismo, partindo dessas considerações, estabelece seus objetivos finalistas, que Malatesta chama de “anarquia”, preconizando como a realidade deveria ser, e concebendo estratégias e táticas para transformar a realidade nesse sentido.
Na busca de conhecer cientificamente a realidade social, Malatesta (2007a, pp. 39-41) enfatiza que “a dúvida deve ser a posição mental daqueles que aspiram aproximar-se cada vez mais da verdade ou, pelo menos, dessa porção de verdade que é possível alcançar”. Tal abertura para a compreensão da realidade social seria fundamental, visto que, em particular nas ciências sociais, as verdades absolutas, de certeza preditiva, praticamente inexistem. Para ele, “na ciência, as teorias [são] sempre hipotéticas e provisórias” e “as provas são algo relativo”; a ciência se contenta “com o acercar-se [da verdade absoluta] fatigosamente, descobrindo verdades parciais, que [são consideradas] sempre provisórias e revisáveis”. Ao ressaltar essa “porção de verdade que é possível alcançar”, Malatesta reconhece que a complexidade da vida, da realidade social, é muito maior do que a capacidade daqueles que querem apreendê-la; por razão dessa distinção entre natureza e pensamento, ao analisar a realidade, uma pessoa, ou mesmo um grupo, nunca possui condições de compreendê-la em sua totalidade e, por isso, o conhecimento é sempre parcial, fragmentário.[15]
São, portanto, os métodos e as teorias que devem se adaptar à realidade e não o contrário. Devem ser utilizados na medida em que ajudem a compreender essa realidade e, mostrando-se ineficazes, têm de ser aprimorados e/ou substituídos. Deve-se, segundo sustenta Malatesta, buscar uma postura antidogmática diante dos fatos e um ferramental teórico-metodológico que não se confunda com doutrina/ideologia e que possa ser utilizado, aprimorado ou substituído, na medida de sua capacidade explicativa.
Ao caracterizar o anarquismo como uma doutrina/ideologia, Malatesta reconhece que não há um método de análise ou uma teoria social anarquista; em termos históricos, os anarquistas utilizaram diferentes ferramentas teórico-metodológicas para a compreensão da realidade sem, com isso, deixarem de ser anarquistas. O que caracteriza o anarquismo é um conjunto de princípios político-ideológicos e há diferentes posições estratégicas sobre as quais se constituem, historicamente, suas diferentes correntes.[16]
Em linhas gerais, as posições doutrinárias e estratégicas que caracterizam o anarquismo malatestiano são as seguintes. Malatesta realiza críticas à exploração do trabalho, à propriedade privada, à dominação estatista, à educação, à religião e ao patriotismo de seu tempo; a violência e a luta de classes são, para ele, traços fundamentais desse sistema de dominação. Ele subsidia essas críticas com elementos teórico-metodológicos que visam aproximar-se, tanto quanto possível, das ciências sociais. Propõe como objetivos finalistas a socialização da propriedade, do poder, o fim das classes sociais, a liberdade e a igualdade para todos. Esses objetivos, conforme ele os concebe, não decorrem, obrigatoriamente, de reflexões científicas. Sua estratégia é o dualismo organizacional, que preconiza a organização simultaneamente política (especificamente anarquista) e de massas (movimentos populares), impulsionando o trabalho de base, a propaganda e a educação entre os trabalhadores e conformando uma força social capaz, por meio das lutas por reformas, de promover uma revolução social. Essa estratégia, por mais que contenha traços científicos que a norteiam (subordinação das táticas à estratégia e desta ao objetivo[17]), também não pode ser considerada completamente parte do campo científico.
Enfim, pode-se afirmar que a distinção teórico-conceitual proposta por Malatesta é feita, em realidade, para potencializar a prática política anarquista; tal é a maneira encontrada por ele para conciliar teoria e prática.
Ciência e doutrina/ideologia
Para propósitos didáticos, propõe-se sistematizar a definição das categorias malatestianas anteriormente discutidas.
Ciência. Em seu sentido social, constitui uma forma de produção e sistematização de conhecimentos passados e/ou presentes, históricos e/ou teóricos, estruturais e/ou conjunturais, que explicam realidades sociais e nelas possuem respaldo. Possui condições de explicar a ocorrência e a repetição de um ou vários fatos sociais e pode realizar predições futuras sobre aquilo que obrigatoriamente decorre dos fatos passados e presentes.
Doutrina/ideologia. Conjunto de princípios que possuem como fundamento posições ético-valorativas e que estabelecem objetivos normativos pautados na aspiração de um conjunto de agentes sociais. Pode interagir com a ciência no que diz respeito ao ferramental utilizado para explicar a realidade social mas, principalmente, proporciona um quadro de referência capaz de nortear o julgamento dessa realidade, oferece elementos para que se pense como ela deveria ser e que se concebam posições políticas, idéias e ações para mantê-la ou modificá-la.
Apontamentos conclusivos
A distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia na obra de Malatesta constitui uma contribuição relevante ao campo epistemológico e teórico-metodológico da Filosofia e das Ciências Sociais. Estabelecida com base na crítica das noções de socialismo/anarquismo científico, e relacionando-se, mais ou menos criticamente, à contribuição de teóricos notáveis como Weber e Marx, essa distinção fornece parte de um ferramental conceitual para que teoria e prática possam ser conciliadas adequadamente.
Distinguir ciência e doutrina/ideologia ou mesmo ciência e anarquismo constitui um passo fundamental para a busca antidogmática de métodos de análise e teorias sociais que possam explicar de maneira mais adequada a sociedade. Contribui, também, para pensar o lugar das doutrinas/ideologias políticas, dentre as quais encontra-se o anarquismo, nos processos de mudança e transformação social. Finalmente, essa distinção permite aprimorar as práticas políticas que apontam para objetivos estabelecidos sob pressupostos ideológico-doutrinários e que, por meio de um conhecimento científico da realidade, buscam as melhores estratégias e táticas para chegar de um ponto a outro. Realizando uma análise adequada da realidade social e com seus objetivos finalistas bem delineados o anarquismo pode conceber meios adequados para uma transformação social revolucionária que substitua o capitalismo/estatismo pelo socialismo libertário e autogestionário.
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[1] Está em curso um projeto coordenado por Davide Turcato de publicação das obras completas de Malatesta em italiano. Dos dez volumes previstos, apenas os primeiros estão disponíveis. Cf. http://www.zeroincondotta.org/em_operecomplete.html.
[2] Para breves exposições das contribuições de Malatesta ao campo do anarquismo e suas estratégias, cf. Corrêa, 2009, 2013a.
[3] Para uma discussão mais pormenorizada sobre epistemologia, método de análise e teoria social em Malatesta, cf. Corrêa, 2013b. Esse texto constitui uma versão ampliada do presente artigo e discute não somente a distinção das categorias ciência e doutrina/ideologia, mas também outras questões epistemológicas e contribuições teórico-metodológicas para a análise social elaboradas por Malatesta.
[4] Obras de vulgarização do pensamento do autor, como Richards (2007a) e Malatesta (2008) – que mesclam diferentes escritos, produzidos em diversos momentos históricos, apresentado-os por tema –, se por um lado permitem uma compreensão temática de suas idéias, por outro complicam uma análise histórica mais pormenorizada, que abarque o contexto. Outro aspecto a ser destacado são os problemas de ordem lógica, que atravessam parte da produção do autor, em especial no que tange às suas reflexões teórico-metodológicas sobre a relação entre as esferas econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica e sobre o poder.
[5] Friedrich Engels, em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, de 1880, considerado por Karl Marx (1880) “uma introdução ao socialismo científico”, afirma: “A realização desse ato [a revolução proletária], que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário moderno, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse ato, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação.” (Engels, 2008, p. 126)
[6] Piotr Kropotkin, em “Modern Science and Anarchism”, na edição de 1913, assim conceitua o que foi chamado de “anarquismo científico”: “O anarquismo é um conceito universal baseado em uma explicação mecânica de todos os fenômenos, compreendendo a totalidade da natureza – isto é, abarcando a vida das sociedades humanas e seus problemas econômicos, políticos e morais. Seu método de investigação é o das ciências naturais exatas e, se ele pretende ser científico, todas as suas conclusões devem, necessariamente, ser verificadas pelo método pelo qual toda conclusão científica deve ser verificada. Seu objetivo é construir uma filosofia sintética compreendendo, em uma generalização, todos os fenômenos da natureza – e, portanto, também, a vida das sociedades.” (Kropotkin, 1970, p. 150)
[7] Para uma reflexão mais aprofundada, que apresenta e discute as distintas posições entre os anarquistas no que diz respeito à epistemologia, métodos de análise e teoria social, cf. Corrêa, 2012, pp. 83-92.
[8] Propõe-se a adoção dessa categoria-síntese (doutrina/ideologia), priorizando a escolha terminológica do próprio Malatesta. Ele utiliza muito pouco o termo “ideologia”, talvez para evitar a confusão com a concepção marxista. Bem mais comum, no entanto, é a utilização do termo “doutrina”. Malatesta fala em “doutrina socialista” (2007b, p. 91), no “sindicalismo, como doutrina e prática” (1995a, p. 32) e que “sob o nome de anarquia expõem-se doutrinas tão divergentes e contraditórias” (2000a, p. 45). Fala do “individualismo anárquico” como “doutrina distinta” (2007c, p. 34), considera o “tolstoismo” e o “antimilitarismo” doutrinas (Malatesta, 2007d, p. 59; Richards 2007b, p. 212) e menciona o “valor teórico e prático de sua doutrina” (2004, p. 53), referindo-se à Plataforma Organizacional.
[9] A categoria doutrina/ideologia, na concepção malatestiana, relaciona-se ao que Stoppino (2004, pp. 585-587) conceitua como ideologia em “sentido fraco”; trata-se de “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar comportamentos políticos coletivos”, ou ainda, “um sistema de idéias conexas com a ação”, que compreendem “um programa e uma estratégia para sua atuação”. Esse conceito distingue-se do conceito de ideologia em “sentido forte” que, em bases marxistas, a concebe como uma “crença falsa”, um “conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política”.
[10] Weber (2010, pp. 31; 24) reconhece que o conhecimento “está condicionado pela orientação de nosso interesse de conhecimento”. Há um interesse do pesquisador que, em última instância, norteia toda a produção científica. Assim, a ciência não é neutra, mas mediada por interesses que são inerentes àqueles que a realizam. Ao mesmo tempo, os pesquisadores, quando realizam produções científicas, não devem buscar despir-se de seus ideais políticos, mas “trazer claramente à consciência do leitor e à própria quais os critérios segundo os quais a realidade é medida e o juízo de valor é derivado”. Trata-se, conforme Weber (2001) discute de maneira mais pormenorizada em sua noção de “neutralidade axiológica”, de distinguir ciência e juízo de valor. Weber (2010, p. 24) ainda enfatiza que, se isso for feito, “assumir posição avaliadora prática pode ser não apenas inofensivo para o interesse puramente científico como diretamente útil, até mesmo devido”. Ou seja, ele não sustenta que o conhecimento científico é neutro e nem que os cientistas não podem ter posições políticas; coloca, tão-somente, a necessidade de diferenciar a produção científica dos juízos de valor e de distinguir as categorias ciência e política. Não está em questão, neste momento, discutir em que medida a neutralidade axiológica é possível ou desejável.
[11] Cf., por exemplo: Rubel e Janover, 2010; Guérin, 1979; Guillerm e Bourdet, 1976.
[12] A cisão da Internacional, ocorrida em 1872, teve por motivo principal as diferentes concepções acerca do papel do Estado na revolução. Marx defendeu e fez aprovar um texto que considerava a “unificação do proletariado em partido político” e “a conquista do poder político”, uma “grande obrigação do proletariado”. (AIT, 2012, pp. 81-82) Posição em evidente contradição com as proposições da Comuna de Paris, conforme aponta Samis (2011), e que remete diretamente à estratégia do Manifesto Comunista.
[13] Prioridade que também parece ter sido a de Marx. Se tomado em conta todo o conjunto de sua produção, as análises teóricas e históricas constituem a imensa maioria de sua produção e temas essencialmente políticos, como as estratégias de mobilização e luta, aparecem muito marginalmente. Elementos biográficos de Marx (cf. Mehring, 1973), como, por exemplo, sua prioridade em escrever O Capital em vez de participar dos congressos da Internacional, parecem também reforçar essa hipótese.
[14] Para Malatesta (2007a, pp. 42; 45), “a ciência satisfaz certas necessidades intelectuais e é, ao mesmo tempo, um instrumento muito eficaz de poder”. A estruturação dominadora e hierárquica da sociedade conta, na esfera cultural/ ideológica, com esse poderoso instrumento de poder, que pode ser utilizado para a dominação; não conhecer implica que se aceite o conhecimento de outros e, no caso desses outros estarem comprometidos com os interesses dominantes, como freqüentemente estão, significa aceitar uma leitura dominante de mundo. Assim como a economia e a política, para Malatesta, numa futura sociedade a ciência deveria ser socializada. “Em nosso programa está escrito não somente pão para todos, mas também ciência para todos.” Essa socialização da ciência seria importante por razão de sua produção especializada estar ligada, na maioria dos casos, aos interesses dominantes; a própria produção do conhecimento separada da sociedade em geral e dos trabalhadores em particular fortaleceria as diferenças de classe. Segundo a noção malatestiana, os trabalhadores deveriam ter condições, por si mesmos, colocando fim entre a divisão do trabalho manual e intelectual, dedicar-se à produção científica e desenvolvê-la em seu próprio favor.
[15] Há, nessa posição, similaridades com Bakunin (2011, p. 91), que afirmou: “a ciência compreende o pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida”.
[16] Sobre os princípios anarquistas, seus debates estratégicos mais relevantes e suas correntes, cf.: Corrêa, 2012.
[17] Cf. Clausewitz, 2010, p. 71.
Este artigo discute a distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia na obra do anarquista italiano Errico Malatesta, uma de suas contribuições mais significativas à Filosofia e às Ciências Sociais, particularmente ao campo epistemológico e teórico-metodológico. Estabelecida com base na crítica das noções de socialismo/anarquismo científico, e relacionando-se, mais ou menos criticamente, à contribuição de teóricos notáveis como Max Weber e Karl Marx, essa distinção visa fornecer um ferramental conceitual para que teoria e prática possam ser conciliadas adequadamente. A ciência é definida por Malatesta, em seu sentido social, como uma forma de produção e sistematização de conhecimentos passados e/ou presentes, históricos e/ou teóricos, estruturais e/ou conjunturais, que explicam realidades sociais e nelas possuem respaldo. Ela possui condições de explicar a ocorrência e a repetição de um ou vários fatos sociais e pode realizar predições futuras sobre aquilo que obrigatoriamente decorre dos fatos passados e presentes. A doutrina/ideologia é um conjunto de princípios que possuem como fundamento posições ético-valorativas e que estabelecem objetivos normativos pautados na aspiração de um conjunto de agentes sociais. Ela pode interagir com a ciência no que diz respeito ao ferramental utilizado para explicar a realidade social mas, principalmente, proporciona um quadro de referência capaz de nortear o julgamento dessa realidade, oferece elementos para que se pense como ela deveria ser e que se concebam posições políticas, idéias e ações para mantê-la ou modificá-la. Distinguir ciência e doutrina/ideologia constitui um passo fundamental para: 1.) a busca antidogmática de métodos de análise e teorias sociais que possam explicar de maneira mais adequada a sociedade; 2.) pensar o lugar das doutrinas/ideologias políticas nos processos de mudança e transformação social; 3.) aprimorar as práticas políticas que apontam para objetivos estabelecidos sob pressupostos ideológico-doutrinários e que, por meio de um conhecimento científico da realidade, buscam as melhores estratégias e táticas para chegar de um ponto a outro.
Palavras chave: Errico Malatesta, epistemologia, ciência, doutrina/ideologia, anarquismo.
* Artigo elaborado como contribuição ao “Colóquio Internacional Ciência e Anarquismo” (11 a 14 de novembro de 2013, São Paulo) [https://cienciaeanarquismo.milharal.org/], promovido pela Biblioteca Terra Livre [http://bibliotecaterralivre.noblogs.org/]. Eixo: Concepções anarquistas da ciência.
** Editor pós-graduado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestre pela Universidade de São Paulo (EACH), no programa de Mudança Social e Participação Política. Membro da Comissão Editorial da Faísca Publicações e do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA). E-mail: felipecorreapedro@gmail.com.
Introdução
Errico Malatesta (1853-1932) foi um importante anarquista italiano, que contribuiu, em teoria e prática, com o desenvolvimento do anarquismo em muitos países; militou em distintas localidades da Europa, das Américas, da África e da Ásia. Filho de uma família de comerciantes com algum recurso, estudou no Liceu de Santa Maria Capua Vetere, localidade de seu nascimento, ingressando posteriormente na Faculdade de Medicina, da Universidade de Nápoles. Os contratempos, em parte de ordem política, fizeram-no abandonar o curso, vivendo, a partir de então, de biscates, dentre eles os ofícios de mecânico e eletricista. Ainda jovem, acreditou por algum tempo no republicanismo de Giuseppe Mazzini, mas logo o abandonou, sendo convertido ao anarquismo entre 1871 e 1872 – em cujo processo Mikhail Bakunin foi determinante –, doutrina que defendeu até sua morte em Roma. Dos quase 80 anos de vida, mais de 60 Malatesta foi anarquista. Acompanhou, por isso, um período amplo do anarquismo em distintas localidades, os fluxos e refluxos dos movimentos populares e do próprio anarquismo, assim como diferentes idéias e práticas hegemônicas que o permearam nesse período. Criou e participou de organizações anarquistas, organizações e movimentos de massas, insurreições e iniciativas que envolveram a propaganda escrita e oral. Preso diversas vezes, passou praticamente 10 anos de sua vida nas prisões. (Fabbri, 2010; Nettlau, 2008, 2012; Richards, 2007b)
Qualquer investigação teórica e/ou histórica da obra de Malatesta deve ser realizada cuidadosamente, sem apontar conclusões demasiadamente definitivas. Isso porque suas obras completas não estão ainda disponíveis ao público; os escritos aos quais se possui acesso constituem, portanto, apenas parte de sua produção. Se nem em italiano as obras completas estão disponíveis[1], nos outros idiomas o acesso é bem limitado. Outro fator relevante é que Malatesta nunca foi, e nem pretendeu ser, um grande teórico. Seus escritos tiveram como função, principalmente, a propaganda anarquista; artigos de jornais e material de divulgação/vulgarização das propostas anarquistas constituem a maior parte de sua produção.
Entretanto, uma análise mais detida da obra malatestiana disponível evidencia que o autor, mesmo não tendo a erudição de um Bakunin ou um Piotr Kropotkin, possui contribuições relevantes, não somente no que tange ao anarquismo e suas estratégias[2], mas também ao campo da Filosofia e das Ciências Sociais, em especial suas reflexões sobre epistemologia, método de análise e teoria social.[3]
Seu discípulo Luigi Fabbri afirmou, nesse sentido, que Malatesta
dedicou muito de seu tempo para acompanhar as correntes intelectuais, não apenas as dos indivíduos de ideologia e prática anarquista em diferentes países, mas também dos desenvolvimentos do pensamento filosófico e científico contemporâneo, ao qual dedicou atenção e grande interesse. (Fabbri, 2010)
Talvez, justamente, por conhecer os debates filosóficos e científicos de seu tempo, por não estar diretamente vinculado às discussões acadêmicas e por teorizar muitas vezes sobre suas próprias observações, Malatesta tenha desenvolvido posições relativamente inovadoras. Desde uma perspectiva filosófica e científica, Malatesta pode ser considerado um homem do século XX, em alguma medida “a frente de seu tempo”, distinguindo-se, por exemplo, de Kropotkin, apenas 10 anos mais velho e cuja produção nesses campos vincula-se, em grande medida, às posições majoritárias do século XIX.
O presente artigo tem como propósito, a partir da limitada obra disponível do autor e mesmo com suas complicações[4], elaborar uma análise criteriosa de uma de suas contribuições mais relevantes ao campo epistemológico e teórico-metodológico: a distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia. Assim, não se pretende aprofundar a discussão sobre o anarquismo e suas estratégias, mas abordar uma questão que oferece elementos para que se estabeleçam os limites de uma conceituação adequada do anarquismo e para que se reflita acerca de sua relação com o campo científico.
A contribuição de Malatesta aqui discutida parece ser não somente mais adequada que a de seus contemporâneos, mas algo que, como parte de um ferramental analítico mais amplo, pode auxiliar a compreensão do mundo contemporâneo e subsidiar reflexões acerca das maneiras mais adequadas de nele intervir.
A distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia
Para a distinção das categorias agora abordadas, o ponto de partida de Malatesta é a noção de “socialismo/anarquismo científico” que, surgida durante o século XIX, avançou pelo século XX, tanto no campo do marxismo[5] como do anarquismo[6]. Ainda que a concepção marxista de “socialismo científico” e a noção kropotkiniana de “anarquismo científico” tenham diferenças substantivas, apoiando-se em elementos teórico-metodológicos distintos, elas possuem uma similaridade: pretendem dar à doutrina político-ideológica do socialismo, ainda que em diferentes correntes, um caráter científico.
Ao passo que, em grande medida, desde Marx e Engels, o marxismo vem insistindo em manter esse vínculo socialismo-ciência, o debate epistemológico, metodológico e teórico do anarquismo, tomando em conta produções anteriores e posteriores às de Kropotkin, variou significativamente.[7] O fato é que, sendo Kropotkin, sem dúvidas, o clássico mais difundido entre os anarquistas do século XX, suas posições, dentre as quais se encontra a acima mencionada, tiveram impacto considerável. Foi com os continuadores dessas posições, assim como com os marxistas, que Malatesta debateu, buscando demonstrar que esse vínculo socialismo-ciência estaria equivocado. Segundo ele,
o cientificismo (não digo a ciência) que prevaleceu na segunda metade do século XIX produziu a tendência de considerar verdades científicas, ou seja, leis naturais e, portanto, necessárias e fatais, o que era somente o conceito, correspondente aos diversos interesses e às diversas aspirações, que cada um tinha de justiça, progresso etc., da qual nasceu “o socialismo científico” e, também, o “anarquismo científico” que, mesmo professados por nossos grandes representantes, sempre me pareceram concepções barrocas, que confundiam coisas e conceitos distintos por sua própria natureza. (Malatesta, 2007a, pp. 39-40)
Para Malatesta, esse vínculo, base das noções de socialismo e anarquismo científico, constitui uma confusão de categorias que, em realidade, são distintas e não podem ser tratadas como se fossem uma só. Em muitos casos, argumenta Malatesta (2007a, p. 39), a noção científica, fundida ao socialismo/anarquismo, seria somente “o revestimento científico com o qual alguns gostam de encobrir seus desejos e vontades”; a utilização do adjetivo “científico” constituiria, na maior parte dos casos, tão-somente uma base para tentativas de autolegitimação.
Partindo dessa crítica, Malatesta defende a necessidade de definir e distinguir duas categorias fundamentais que, ainda que se relacionem, não podem ser reduzidas a uma única: ciência e doutrina/ideologia.
A ciência é a compilação e a sistematização do que se sabe e do que se acredita saber; enuncia o fato e trata de descobrir sua lei, ou seja, as condições nas quais o fato ocorre e necessariamente se repete. […] A missão da ciência é descobrir e formular as condições nas quais o fato necessariamente se produz e se repete: ou seja, é dizer o que é e o que necessariamente deve ser.
O anarquismo é, distintamente, uma aspiração humana, que não se funda em nenhuma necessidade natural verdadeira ou supostamente verdadeira, mas que poderá se realizar segundo a vontade humana. Aproveita os meios que a ciência proporciona ao homem na luta contra a natureza e contra as vontades contrastantes; pode tirar proveito dos progressos do pensamento filosófico quando eles servirem para ensinar aos homens raciocinar melhor e distinguir com maior precisão o real do fantástico; mas não se pode confundi-lo, sem cair no absurdo, nem com a ciência e nem com qualquer sistema filosófico. (Malatesta, 2007a, pp. 41-43)
Partindo destes excertos, pode-se afirmar que, na concepção de Malatesta, ciência e anarquismo são coisas distintas.
A concepção malatestiana de ciência implica uma noção de que seu objeto está no passado e no presente; daquilo que foi e/ou que é. Ela toma por base fenômenos que envolvem a vida natural e social, desde um ponto de vista teórico e/ou histórico, estrutural e/ou conjuntural, e estabelece os marcos para uma explicação desses fenômenos. A capacidade de generalização, ou seja, da explicação de um fenômeno ou conjunto de fenômenos, constitui um de seus aspectos centrais. A ciência nunca tem por objeto o futuro; ela pode, no máximo, realizar predições sobre aquilo que, baseado nas análise do que foi e do que é, necessariamente será, como decorrência dessa interpretação passada e presente.
Quando reflete sobre o anarquismo, Malatesta, na realidade, aborda um elemento que está contido em uma categoria mais ampla, que pode ser definida pelas categorias doutrina e/ou ideologia, que é aqui abordada por meio de uma categoria-síntese: doutrina/ideologia.[8]
A doutrina/ideologia oferece um quadro de referência pautado em um conjunto de valores e numa noção ética que proporciona um ferramental para a análise da realidade passada e presente, estrutural e conjuntural, mas que também permite julgar essa realidade, oferecendo elementos para que se pense, a partir daquilo que foi e que é, aquilo que deveria ser. Ou seja, a doutrina/ideologia oferece uma base valorativa que permite julgar e orientar posições políticas, idéias e ações no sentido de manter ou modificar o status-quo, em um sentido normativo.[9]
Malatesta considera o anarquismo uma doutrina/ideologia pautada que, em aspirações humanas, afirma aquilo que a sociedade deveria ser, posição ético-valorativa de um devir que está para além do campo científico. Capitalismo e Estado devem ser destruídos, dando lugar a uma sociedade sem classes, exploração e dominação, não porque, por meio de uma análise científica do atual sistema de dominação constata-se que esse é o fim natural da evolução da sociedade, rumo a um telos conhecido, mas porque, segundo valores e noções éticas e a partir de uma posição normativa considera-se que a sociedade poderia ser melhor e mais justa do que atualmente é, e que a ação humana, mesmo dentro dos limites estruturais, deveria ser utilizada para impulsionar uma transformação revolucionária dessa sociedade.
Esse objetivo, que se poderia chamar “finalista”, não decorre de uma predição necessária daquilo que obrigatoriamente deve ser, e nem constitui uma necessidade verdadeira de uma decorrência normal do desenvolvimento do atual sistema de dominação; trata-se de uma possibilidade desejada, de algo que se considera melhor e mais justo do que aquilo que está dado.
Malatesta, Weber e Marx: teoria e prática
Essa distinção realizada por Malatesta entre ciência e doutrina/ideologia parece antecipar, em alguma medida, a conhecida distinção weberiana entre os conceitos de ciência e política.
Para Max Weber (2010, pp. 17; 96; 19), a ciência “não tem como ensinar a ninguém sobre o que deve, somente sobre o que pode e – eventualmente – sobre o que quer”; a ciência esclarece aquilo que existe. A função da ciência é, portanto, conhecer, e sua própria história constitui “uma alternância constante entre a tentativa de ordenar teoricamente os fatos mediante uma construção de conceitos […] e a construção de novos conceitos sobre a base assim modificada”. Para ele, a ciência afirma o que é, e não o que deveria ser.
A política, em Weber (2010, pp. 25; 22; 20), possui como fundamento a “exposição de ideais”; ou seja, ela apóia-se, necessariamente, em um porvir, que se encontra no futuro, o qual norteia mediações valorativas e tomadas de posições em relação a distintas questões práticas: o agente político pode “agir como mediador entre opiniões opostas dadas” ou “tomar partido por uma delas. Mas isso nada tem a ver com a ‘objetividade’ científica.” A política envolve um posicionamento não somente valorativo, mas também volitivo e normativo de agentes sociais com interesses futuros, formulados sobre “critérios de valor reguladores [que] podem e devem ser objeto de controvérsia”; ela não pode, portanto, ser resolvida “com base em considerações meramente técnicas”.
Ao passo que a ciência permite conhecer teoricamente uma realidade como ela é, a política envolve um posicionamento concreto que diz respeito às relações de poder e sobre como essa realidade deveria ser.
A distinção conceitual de Malatesta entre as categorias ciência e doutrina/ideologia poderia subsidiar críticas de que ele defenderia uma cisão entre teoria e prática, a neutralidade da ciência e/ou do cientista, entre outras críticas que são freqüentemente endereçadas a Weber, em geral por marxistas, e muitas vezes sem fundamento.[10]
Na própria obra de Marx, podem-se distinguir, de maneira bastante clara, suas contribuições teórico-metodológicas e suas proposições político-doutrinárias. Embora muitas vezes interpretadas ou reivindicadas como parte de um mesmo projeto, elas são coisas distintas e assim devem ser consideradas. Utilizando as categorias malatestianas, parece claro que, nos escritos de Marx, há diferenças marcantes entre a análise histórica – e, portanto, pertencente ao campo científico – da Comuna de Paris, em A Guerra Civil na França (2008), e sua análise teórico-histórica – também pertencente ao campo científico –, dos fundamentos do capitalismo em O Capital (1985), e suas proposições político-ideológicas – pertencentes ao campo doutrinário/ideológico – presentes no Manifesto Comunista (2010).
Se diversos intérpretes atribuíram, por exemplo, à Guerra Civil na França uma contribuição político-ideológica, de como se deveria processar uma transformação revolucionária encabeçada pela classe trabalhadora[11], eles não fizeram mais do que, ainda utilizando as categorias malatestianas, transformar ciência, uma análise daquilo que foi, em doutrina/ideologia, uma proposição daquilo que deveria ser. E as próprias posições de Marx no seio da Primeira Internacional em 1872, um ano após a Comuna e a Guerra Civil, confirmam essa afirmação.[12] Mesmo que a análise daquilo que foi e/ou é seja imprescindível para se propor aquilo que deveria ser, não se trata da mesma coisa, inclusive na obra marxiana.
Se a crítica marxista a Weber é facilitada por suas posições políticas conservadoras e por sua prioridade na produção teórico-científica em relação à prática política[13], a condição de Malatesta é bem diferente.
Malatesta foi um homem muito mais dedicado à prática política do que à produção teórico-científica. Ele participou, com Bakunin, da Aliança da Democracia Socialista, em 1872, e de uma tentativa de rearticulação dessa organização política em 1877, encabeçada por Kropotkin, criou e animou o Partido Revolucionário Socialista Anarquista, de 1891, o Partido Anarquista de Ancona, de 1913 e a União Comunista Anarquista Italiana / União Anarquista Italiana de 1919/20. Foi membro da seção italiana da Primeira Internacional, a partir de 1871; fundou os primeiros sindicatos revolucionários na Argentina, no fim dos anos 1880; participou de greves na Bélgica, em 1893, de protestos contra o aumento do pão na Itália, em 1898; contribuiu com a União Sindical Italiana (USI); participou da greve geral e da Semana Vermelha de 1914, na Itália; articulou a esquerda antifascista na Aliança do Trabalho, no início dos anos 1920. Participou, de armas à mão, das insurreições de Apulia, em 1874, de Benevento, em 1877, e foi preso mais de uma dezena de vezes. (Fabbri, 2010; Nettlau, 2008, 2012; Richards, 2007b)
Não se pode dizer que, ao defender essa distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia, Malatesta estivesse pregando qualquer tipo de “cisão entre teoria e prática”; suas posições foram elaboradas exatamente no sentido de proporcionar uma compreensão mais adequada da realidade para, a partir dela, conceber as melhores maneiras de intervir, promovendo o avanço do programa anarquista, rumo aos objetivos por ele estabelecidos. Deve-se, ainda, adicionar que Malatesta também não sustentou a neutralidade da ciência ou qualquer posição que permita aproximá-lo do positivismo.[14]
Malatesta possui uma noção clara da relação entre ciência e doutrina/ideologia, e a demonstra em suas reflexões acerca do conhecimento científico da realidade social e do anarquismo. Para ele, métodos de análise e teorias sociais pertencem ao campo científico: buscam subsidiar um conhecimento da realidade assim como ela é; o anarquismo, partindo dessas considerações, estabelece seus objetivos finalistas, que Malatesta chama de “anarquia”, preconizando como a realidade deveria ser, e concebendo estratégias e táticas para transformar a realidade nesse sentido.
Na busca de conhecer cientificamente a realidade social, Malatesta (2007a, pp. 39-41) enfatiza que “a dúvida deve ser a posição mental daqueles que aspiram aproximar-se cada vez mais da verdade ou, pelo menos, dessa porção de verdade que é possível alcançar”. Tal abertura para a compreensão da realidade social seria fundamental, visto que, em particular nas ciências sociais, as verdades absolutas, de certeza preditiva, praticamente inexistem. Para ele, “na ciência, as teorias [são] sempre hipotéticas e provisórias” e “as provas são algo relativo”; a ciência se contenta “com o acercar-se [da verdade absoluta] fatigosamente, descobrindo verdades parciais, que [são consideradas] sempre provisórias e revisáveis”. Ao ressaltar essa “porção de verdade que é possível alcançar”, Malatesta reconhece que a complexidade da vida, da realidade social, é muito maior do que a capacidade daqueles que querem apreendê-la; por razão dessa distinção entre natureza e pensamento, ao analisar a realidade, uma pessoa, ou mesmo um grupo, nunca possui condições de compreendê-la em sua totalidade e, por isso, o conhecimento é sempre parcial, fragmentário.[15]
São, portanto, os métodos e as teorias que devem se adaptar à realidade e não o contrário. Devem ser utilizados na medida em que ajudem a compreender essa realidade e, mostrando-se ineficazes, têm de ser aprimorados e/ou substituídos. Deve-se, segundo sustenta Malatesta, buscar uma postura antidogmática diante dos fatos e um ferramental teórico-metodológico que não se confunda com doutrina/ideologia e que possa ser utilizado, aprimorado ou substituído, na medida de sua capacidade explicativa.
Ao caracterizar o anarquismo como uma doutrina/ideologia, Malatesta reconhece que não há um método de análise ou uma teoria social anarquista; em termos históricos, os anarquistas utilizaram diferentes ferramentas teórico-metodológicas para a compreensão da realidade sem, com isso, deixarem de ser anarquistas. O que caracteriza o anarquismo é um conjunto de princípios político-ideológicos e há diferentes posições estratégicas sobre as quais se constituem, historicamente, suas diferentes correntes.[16]
Em linhas gerais, as posições doutrinárias e estratégicas que caracterizam o anarquismo malatestiano são as seguintes. Malatesta realiza críticas à exploração do trabalho, à propriedade privada, à dominação estatista, à educação, à religião e ao patriotismo de seu tempo; a violência e a luta de classes são, para ele, traços fundamentais desse sistema de dominação. Ele subsidia essas críticas com elementos teórico-metodológicos que visam aproximar-se, tanto quanto possível, das ciências sociais. Propõe como objetivos finalistas a socialização da propriedade, do poder, o fim das classes sociais, a liberdade e a igualdade para todos. Esses objetivos, conforme ele os concebe, não decorrem, obrigatoriamente, de reflexões científicas. Sua estratégia é o dualismo organizacional, que preconiza a organização simultaneamente política (especificamente anarquista) e de massas (movimentos populares), impulsionando o trabalho de base, a propaganda e a educação entre os trabalhadores e conformando uma força social capaz, por meio das lutas por reformas, de promover uma revolução social. Essa estratégia, por mais que contenha traços científicos que a norteiam (subordinação das táticas à estratégia e desta ao objetivo[17]), também não pode ser considerada completamente parte do campo científico.
Enfim, pode-se afirmar que a distinção teórico-conceitual proposta por Malatesta é feita, em realidade, para potencializar a prática política anarquista; tal é a maneira encontrada por ele para conciliar teoria e prática.
Ciência e doutrina/ideologia
Para propósitos didáticos, propõe-se sistematizar a definição das categorias malatestianas anteriormente discutidas.
Ciência. Em seu sentido social, constitui uma forma de produção e sistematização de conhecimentos passados e/ou presentes, históricos e/ou teóricos, estruturais e/ou conjunturais, que explicam realidades sociais e nelas possuem respaldo. Possui condições de explicar a ocorrência e a repetição de um ou vários fatos sociais e pode realizar predições futuras sobre aquilo que obrigatoriamente decorre dos fatos passados e presentes.
Doutrina/ideologia. Conjunto de princípios que possuem como fundamento posições ético-valorativas e que estabelecem objetivos normativos pautados na aspiração de um conjunto de agentes sociais. Pode interagir com a ciência no que diz respeito ao ferramental utilizado para explicar a realidade social mas, principalmente, proporciona um quadro de referência capaz de nortear o julgamento dessa realidade, oferece elementos para que se pense como ela deveria ser e que se concebam posições políticas, idéias e ações para mantê-la ou modificá-la.
Apontamentos conclusivos
A distinção entre as categorias ciência e doutrina/ideologia na obra de Malatesta constitui uma contribuição relevante ao campo epistemológico e teórico-metodológico da Filosofia e das Ciências Sociais. Estabelecida com base na crítica das noções de socialismo/anarquismo científico, e relacionando-se, mais ou menos criticamente, à contribuição de teóricos notáveis como Weber e Marx, essa distinção fornece parte de um ferramental conceitual para que teoria e prática possam ser conciliadas adequadamente.
Distinguir ciência e doutrina/ideologia ou mesmo ciência e anarquismo constitui um passo fundamental para a busca antidogmática de métodos de análise e teorias sociais que possam explicar de maneira mais adequada a sociedade. Contribui, também, para pensar o lugar das doutrinas/ideologias políticas, dentre as quais encontra-se o anarquismo, nos processos de mudança e transformação social. Finalmente, essa distinção permite aprimorar as práticas políticas que apontam para objetivos estabelecidos sob pressupostos ideológico-doutrinários e que, por meio de um conhecimento científico da realidade, buscam as melhores estratégias e táticas para chegar de um ponto a outro. Realizando uma análise adequada da realidade social e com seus objetivos finalistas bem delineados o anarquismo pode conceber meios adequados para uma transformação social revolucionária que substitua o capitalismo/estatismo pelo socialismo libertário e autogestionário.
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[1] Está em curso um projeto coordenado por Davide Turcato de publicação das obras completas de Malatesta em italiano. Dos dez volumes previstos, apenas os primeiros estão disponíveis. Cf. http://www.zeroincondotta.org/em_operecomplete.html.
[2] Para breves exposições das contribuições de Malatesta ao campo do anarquismo e suas estratégias, cf. Corrêa, 2009, 2013a.
[3] Para uma discussão mais pormenorizada sobre epistemologia, método de análise e teoria social em Malatesta, cf. Corrêa, 2013b. Esse texto constitui uma versão ampliada do presente artigo e discute não somente a distinção das categorias ciência e doutrina/ideologia, mas também outras questões epistemológicas e contribuições teórico-metodológicas para a análise social elaboradas por Malatesta.
[4] Obras de vulgarização do pensamento do autor, como Richards (2007a) e Malatesta (2008) – que mesclam diferentes escritos, produzidos em diversos momentos históricos, apresentado-os por tema –, se por um lado permitem uma compreensão temática de suas idéias, por outro complicam uma análise histórica mais pormenorizada, que abarque o contexto. Outro aspecto a ser destacado são os problemas de ordem lógica, que atravessam parte da produção do autor, em especial no que tange às suas reflexões teórico-metodológicas sobre a relação entre as esferas econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica e sobre o poder.
[5] Friedrich Engels, em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, de 1880, considerado por Karl Marx (1880) “uma introdução ao socialismo científico”, afirma: “A realização desse ato [a revolução proletária], que redimirá o mundo, é a missão histórica do proletariado moderno. E o socialismo científico, expressão teórica do movimento proletário moderno, destina-se a pesquisar as condições históricas e, com isso, a natureza mesma desse ato, infundindo assim à classe chamada a fazer essa revolução, à classe hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação.” (Engels, 2008, p. 126)
[6] Piotr Kropotkin, em “Modern Science and Anarchism”, na edição de 1913, assim conceitua o que foi chamado de “anarquismo científico”: “O anarquismo é um conceito universal baseado em uma explicação mecânica de todos os fenômenos, compreendendo a totalidade da natureza – isto é, abarcando a vida das sociedades humanas e seus problemas econômicos, políticos e morais. Seu método de investigação é o das ciências naturais exatas e, se ele pretende ser científico, todas as suas conclusões devem, necessariamente, ser verificadas pelo método pelo qual toda conclusão científica deve ser verificada. Seu objetivo é construir uma filosofia sintética compreendendo, em uma generalização, todos os fenômenos da natureza – e, portanto, também, a vida das sociedades.” (Kropotkin, 1970, p. 150)
[7] Para uma reflexão mais aprofundada, que apresenta e discute as distintas posições entre os anarquistas no que diz respeito à epistemologia, métodos de análise e teoria social, cf. Corrêa, 2012, pp. 83-92.
[8] Propõe-se a adoção dessa categoria-síntese (doutrina/ideologia), priorizando a escolha terminológica do próprio Malatesta. Ele utiliza muito pouco o termo “ideologia”, talvez para evitar a confusão com a concepção marxista. Bem mais comum, no entanto, é a utilização do termo “doutrina”. Malatesta fala em “doutrina socialista” (2007b, p. 91), no “sindicalismo, como doutrina e prática” (1995a, p. 32) e que “sob o nome de anarquia expõem-se doutrinas tão divergentes e contraditórias” (2000a, p. 45). Fala do “individualismo anárquico” como “doutrina distinta” (2007c, p. 34), considera o “tolstoismo” e o “antimilitarismo” doutrinas (Malatesta, 2007d, p. 59; Richards 2007b, p. 212) e menciona o “valor teórico e prático de sua doutrina” (2004, p. 53), referindo-se à Plataforma Organizacional.
[9] A categoria doutrina/ideologia, na concepção malatestiana, relaciona-se ao que Stoppino (2004, pp. 585-587) conceitua como ideologia em “sentido fraco”; trata-se de “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar comportamentos políticos coletivos”, ou ainda, “um sistema de idéias conexas com a ação”, que compreendem “um programa e uma estratégia para sua atuação”. Esse conceito distingue-se do conceito de ideologia em “sentido forte” que, em bases marxistas, a concebe como uma “crença falsa”, um “conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política”.
[10] Weber (2010, pp. 31; 24) reconhece que o conhecimento “está condicionado pela orientação de nosso interesse de conhecimento”. Há um interesse do pesquisador que, em última instância, norteia toda a produção científica. Assim, a ciência não é neutra, mas mediada por interesses que são inerentes àqueles que a realizam. Ao mesmo tempo, os pesquisadores, quando realizam produções científicas, não devem buscar despir-se de seus ideais políticos, mas “trazer claramente à consciência do leitor e à própria quais os critérios segundo os quais a realidade é medida e o juízo de valor é derivado”. Trata-se, conforme Weber (2001) discute de maneira mais pormenorizada em sua noção de “neutralidade axiológica”, de distinguir ciência e juízo de valor. Weber (2010, p. 24) ainda enfatiza que, se isso for feito, “assumir posição avaliadora prática pode ser não apenas inofensivo para o interesse puramente científico como diretamente útil, até mesmo devido”. Ou seja, ele não sustenta que o conhecimento científico é neutro e nem que os cientistas não podem ter posições políticas; coloca, tão-somente, a necessidade de diferenciar a produção científica dos juízos de valor e de distinguir as categorias ciência e política. Não está em questão, neste momento, discutir em que medida a neutralidade axiológica é possível ou desejável.
[11] Cf., por exemplo: Rubel e Janover, 2010; Guérin, 1979; Guillerm e Bourdet, 1976.
[12] A cisão da Internacional, ocorrida em 1872, teve por motivo principal as diferentes concepções acerca do papel do Estado na revolução. Marx defendeu e fez aprovar um texto que considerava a “unificação do proletariado em partido político” e “a conquista do poder político”, uma “grande obrigação do proletariado”. (AIT, 2012, pp. 81-82) Posição em evidente contradição com as proposições da Comuna de Paris, conforme aponta Samis (2011), e que remete diretamente à estratégia do Manifesto Comunista.
[13] Prioridade que também parece ter sido a de Marx. Se tomado em conta todo o conjunto de sua produção, as análises teóricas e históricas constituem a imensa maioria de sua produção e temas essencialmente políticos, como as estratégias de mobilização e luta, aparecem muito marginalmente. Elementos biográficos de Marx (cf. Mehring, 1973), como, por exemplo, sua prioridade em escrever O Capital em vez de participar dos congressos da Internacional, parecem também reforçar essa hipótese.
[14] Para Malatesta (2007a, pp. 42; 45), “a ciência satisfaz certas necessidades intelectuais e é, ao mesmo tempo, um instrumento muito eficaz de poder”. A estruturação dominadora e hierárquica da sociedade conta, na esfera cultural/ ideológica, com esse poderoso instrumento de poder, que pode ser utilizado para a dominação; não conhecer implica que se aceite o conhecimento de outros e, no caso desses outros estarem comprometidos com os interesses dominantes, como freqüentemente estão, significa aceitar uma leitura dominante de mundo. Assim como a economia e a política, para Malatesta, numa futura sociedade a ciência deveria ser socializada. “Em nosso programa está escrito não somente pão para todos, mas também ciência para todos.” Essa socialização da ciência seria importante por razão de sua produção especializada estar ligada, na maioria dos casos, aos interesses dominantes; a própria produção do conhecimento separada da sociedade em geral e dos trabalhadores em particular fortaleceria as diferenças de classe. Segundo a noção malatestiana, os trabalhadores deveriam ter condições, por si mesmos, colocando fim entre a divisão do trabalho manual e intelectual, dedicar-se à produção científica e desenvolvê-la em seu próprio favor.
[15] Há, nessa posição, similaridades com Bakunin (2011, p. 91), que afirmou: “a ciência compreende o pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida”.
[16] Sobre os princípios anarquistas, seus debates estratégicos mais relevantes e suas correntes, cf.: Corrêa, 2012.
[17] Cf. Clausewitz, 2010, p. 71.
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