A Igreja e o Estado – Mikhail Bakunin
É óbvio que a liberdade não será restituída à humanidade, e que os verdadeiros interesses da sociedade – quaisquer que sejam os grupos, organizações sociais ou indivíduos que a compõem – só serão satisfeitos quando os Estados não mais existirem. Está claro que todos os chamados interesses gerais que o Estado deveria representar são de fato uma abstração, uma ficção, uma mentira. Estes interesses, na realidade, não são nada mais que a negação total e contínua dos interesses reais das regiões, comunas, associações e da grande maioria dos indivíduos submetidos ao Estado. O Estado é um enorme matadouro, um vasto cemitério no qual, sob a sombra e o pretexto de abstração, todas as reais aspirações e forças ativas de um país deixaram-se enterrar generosa e pacificamente.
Já que nenhuma abstração existe por si ou para si mesma, já que não tem pernas para andar, nem braços para criar, nem estômago para digerir as milhares de vítimas que lhe são dadas para que devore, torna-se óbvio que essa abstração religiosa e celestial, o próprio deus, representa na verdade os interesses muito positivos e reais de uma casta privilegiada, o clero. Da mesma forma que seu complemento terreno, a abstração política, que é o Estado, representa os interesses não menos reais e positivos da classe que é hoje o principal – se não o único – agente da exploração e que, além disso, ainda demonstra uma certa tendência para absorver todas as outras classes: a burguesia. E assim como o clero sempre estava dividido e hoje tende a dividir-se ainda mais entre uma minoria rica e poderosa e uma maioria empobrecida que lhe é subordinada; assim também a burguesia e suas várias organizações – tanto sociais quanto políticas, na indústria, agricultura, bancos e comércio, bem como em todas as funções administrativas, financeiras, judiciárias, acadêmicas, policiais e militares do Estado – tendem a tornar-se uma verdadeira oligarquia. Transformar-se-ão em enorme massa de indivíduos pretensiosos e decadentes, vivendo numa ilusão perpétua, empurrados inevitavelmente e cada vez mais para o proletariado pela força irresistível da situação econômica atual e reduzidos a servir como instrumentos cegos dessa toda-poderosa oligarquia.
A abolição da Igreja e do Estado deve ser a primeira e indispensável condição para a verdadeira libertação da sociedade; só depois que isso acontecer é que a sociedade poderá ser organizada de uma maneira diferente. Não de cima para baixo e segundo algum plano ideal sonhado por alguns sábios e eruditos, e menos ainda por decretos emanados de algum poder ditatorial, ou ainda por uma assembleia nacional eleita por sufrágio universal. Como já demonstrei, um tal sistema levaria inevitavelmente à criação de um novo estado e, consequentemente, à formação de uma aristocracia oficial, isto é, uma classe de indivíduos que não teriam nada em comum com o povo e que começariam imediatamente a explorar e subjugar esse povo em nome do bem estar geral ou para salvar o Estado.
A futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação e união dos operários; primeiro em associações, depois em comunas, em regiões, em países e, finalmente, numa grande federação internacional e universal. Só assim poderá ser estabelecida a liberdade e a facilidade geral da nova ordem, uma ordem que, longe de querer negar, garante e tenta harmonizar os interesses dos indivíduos e da sociedade.
Algumas pessoas acreditam ser impossível obter essa harmonia entre os interesses dos indivíduos e os interesses da sociedade como um todo, pois tais interesses são contraditórios, jamais alcançando um equilíbrio ou até mesmo chegando a um mínimo entendimento mútuo. A tais objeções respondo que, se até agora esses interesses jamais foram comuns, a culpa cabe ao Estado, que sempre sacrificou os interesses da maioria em benefício de uma minoria privilegiada. Aquela famosa incompatibilidade, aquele conflito entre os interesses pessoais e os da sociedade não são mais do que um artifício e uma mentira política nascidos de uma mentira teológica, que inventou a doutrina do pecado original para degredar o homem e destruir sua consciência íntima de seu próprio valor. Esta falsa ideia do antagonismo de interesses também foi disseminada pelas ilusões da metafísica que, como se sabe, é parente próxima da teologia.
Por não compreender a sociabilidade da natureza humana, os metafísicos consideravam a sociedade um agregado mecânico e artificial de indivíduos. Este agregado seria formado abruptamente sob a bênção de algum tratado formal ou secreto, feito livremente ou influenciado por algum poder superior. Antes de entrar para a sociedade, estes indivíduos, dotados de uma alma imortal, gozariam de liberdade total.
Os metafísicos, sobretudo os que creem na imortalidade da alma, afirmam que, fora da sociedade, os homens podem unir-se em sociedade apenas ao custo de sua liberdade, sua independência natural e do sacrifício de sues interesses. Tal renúncia, tal sacrifício deve, portanto, ser mais imperativo quanto a sociedade for populosa e sua organização mais complexa. Em tal caso, o Estado é a expressão de todos os sacrifícios individuais. Por existir de forma tão abstrata e ao mesmo tempo violenta, o Estado continua cada vez mais a impedir a liberdade individual em nome da mentira chamada “bem comum”, que obviamente representa os exclusivos interesses da classe dominante. Desta forma, o Estado se mostra como uma negação inevitável, uma aniquilação de toda a liberdade, de todos os interesses individuais e gerais.
Todos os sistemas metafísicos teológicos estão unidos de tal forma que são mutuamente explanatórios. Esta é a razão porque os defensores destes sistemas podem e devem continuar a explorar as massas em nome da Igreja e do Estado. Enchendo seus bolsos e satisfazendo sua luxúria imunda, eles, ao mesmo tempo, podem consolar-se com a ideia de que estão trabalhando para a glória de deus, pela vitória da civilização e pela causa do proletariado.
Mas nós, que não acreditamos em deus, na imortalidade da alma, nem no livre arbítrio individual, afirmamos que a liberdade deve ser entendida no seu senso mais amplo e profundo como o destino do progresso histórico do homem. Por um contraste estranho mas lógico, nossos adversários, teólogos idealistas e os metafísicos, tomam o princípio da liberdade como o fundamento e a base de suas teorias e chegam facilmente à indispensabilidade da escravidão humana. Nós, que somos teoricamente materialistas, tendemos na prática a criar e fazer durar um idealismo nobre e racional. Nossos inimigos, os idealistas divinos e transcendentais, na prática caem num materialismo vil e sangrento. Praticam-no em nome da mesma lógica, de acordo com a qual, todo progresso é a negação do princípio básico. Estamos convencidos de que toda riqueza do progresso intelectual humano, moral e material, assim como a aparente independência do homem, é produto da vida em sociedade. Fora da sociedade, o homem não seria livre, e nem mesmo se tornaria um homem verdadeiro, isto é, um ser autoconsciente que sente, pensa e fala. Apenas a combinação da inteligência com o trabalho coletivo pode tirar o homem do estágio selvagem e animalesco que constitui sua primeira natureza, ou melhor, seu primeiro passo em direção ao progresso. Estamos seriamente convencidos de que a verdade de toda a vida humana, isto é, interesses, tendências, necessidades, ilusões e mesmo estupidez, assim como os atos de violência e de injustiça, toda ação que parece ser voluntária é apenas uma consequência das forças fatais na vida em sociedade. Não se pode admitir a ideia da independência mútua sem negar a influência recíproca da correlação de manifestações de natureza externa.
Na própria natureza, aquela maravilhosa correlação e filiação do fenômeno não podem ser obtidas sem conflito. Ao contrário, a harmonia das forças naturais parece ser obtida sem conflito. Ao contrário, a harmonia das forças naturais parece ser o único resultado do conflito, que é a condição da vida e do movimento. Na natureza e na sociedade, a ordem sem conflito é mortal.
Se a ordem é natural e possível no universo, é porque o universo não é governado por nenhum sistema criado anteriormente e imposto por um poder supremo. A hipótese teológica de uma legislação suprema leva a um absurdo evidente, e à negação da ordem e da própria natureza. As leis naturais são reais apenas enquanto forem inerentes à natureza, isto é, enquanto não são fixadas por uma autoridade. Estas leis são somente simples manifestações, ou modalidades descontínuas do desenvolvimento das coisas e a combinação de fatos variados, transitórios, porém reais. Juntos constituem o que denominamos “natureza”. A inteligência humana e a ciência observaram estes fatos e os controlaram experimentalmente. Estão reuniram-nos num sistema e os denominaram leis. Mas a própria natureza não tem leis. Ela age inconscientemente, representando em si própria a infinita variedade dos fenômenos, que surgem e se repetem de acordo com a necessidade. Graças a esta inevitabilidade de ação que a ordem universal pode existir e de fato existe.
Tal ordem também surgiu na sociedade humana, que parece evoluir de uma forma dita antinatural, mas na realidade, ela se submete à marcha natural e variável dos fatos. Foi apenas a superioridade do homem sobre os outros animais que trouxe à sua evolução um elemento especial. Este elemento é totalmente natural, no sentido de que tal como tudo que existe, o homem é produto natural da união e interação das forças. O elemento especial é o poder de raciocínio ou a facilidade de generalização e abstração, graças à qual o homem se projeta por meio do pensamento, se examina e se observa como um alienígena, como um objeto externo. Elevando-se sobre si mesmo e por meio de ideias, e, desta forma, elevando-se sobre o mundo circundante, ele chega à representação da abstração perfeita, que é o nada absoluto. Este limite final da maior abstração do pensamento, este nada absoluto é deus.
Este é o significado e a base histórica de todo dogma teológico. Não compreendendo a natureza nem as causas materiais de seus próprios pensamentos, não percebendo as leis naturais que lhes são próprias, os primeiros homens na sociedade não podiam saber que seus conceitos de absoluto eram apenas resultados da faculdade de conceber ideias abstratas. Esta é a razão porque eles consideravam estas ideias, tiradas da natureza, objetos reais diante dos quais a própria natureza deixou de ter significado. Então começaram a adorar suas próprias ficções, suas noções impossíveis do absoluto e a honrá-las. Mas era necessário, de uma forma ou de outra, incorporar e tornar palpável a ideia abstrata do nada – ou deus. Com este objetivo, exaltavam a ideia de divindade e dotavam-na de todas as qualidades e poderes, tanto bons quanto maus, que encontravam apenas na natureza e na sociedade. Esta foi a origem e a evolução histórica de todas as religiões, do fetichismo ao cristianismo.
Não temos a intenção de investigar a história dos absurdos religiosos, teológicos ou metafísicos, e ainda menos de decidir o desenvolvimento das encarnações divinas e visões criadas por séculos de barbarismo. Todos sabem que a superstição sempre deu lugar a assustadores azares que terminavam em torrentes de sangue e lágrimas. Nos contentaremos em dizer que todas estas repulsivas aberrações da pobre humanidade foram circunstâncias históricas inevitáveis no crescimento normal e na evolução do organismo social. Tais observações, dominando a imaginação humana, geraram na sociedade a noção fatal de que o universo é governado por um poder e uma vontade sobrenaturais. Século após século, a sociedade acostumou-se tanto a esta ideia que acabou matando todas as inclinações em direção ao progresso e toda a capacidade de atingi-lo.
A ambição, inicialmente de alguns indivíduos e depois de classes sociais inteiras, fez surgir a escravidão e a conquista dos princípios vitais, e semeou profundamente a ideia da divindade. Desde aí, toda sociedade se tornou impossível sem ter, como fundamento, as instituições da Igreja e do Estado. Estes dois flagelos sociais ainda são defendidos por todos os dogmáticos.
Mal haviam surgido estas instituições, quando duas castas foram organizadas imediatamente: a dos padres e a dos aristocratas que, sem perda de tempo, implantaram profundamente nos escravos a indispensabilidade, a utilidade e a santidade da Igreja e do Estado. Tudo isto teve por objetivo transformar a escravidão brutal em uma escravidão assegurada e legal, consagrada pela vontade do Ser Supremo.
Mas os padres e os aristocratas acreditavam sinceramente nestas instituições que eles mantinham com todo o seu poder e em função do próprio interesse? Eram apenas mentirosos e farsantes? Não, acredito que eram ao mesmo tempo crentes e impostores…
Mas assim, como podemos reconciliar dois papéis aparentemente incompatíveis: crédulo e enganador, mentiroso e crente? Logicamente parece difícil, mas de fato, na vida diária, estas qualidades estão frequentemente associadas.
A grande maioria das pessoas vive em contradição consigo mesma e sob contínuos mal entendidos. Geralmente, não se dão conta disto até que algum fato extraordinário os tire do seu sonambulismo habitual e os force a olhar para si e ao redor.
Na política, como na religião, os homens são apenas máquinas nas mãos dos exploradores. Mas assaltantes e assaltados, opressores e oprimidos vivem lado a lado, governados por um punhado de indivíduos que devem ser considerados como verdadeiros exploradores. São sempre o mesmo tipo de gente, livre de todos os preconceitos políticos e religiosos, que maltratam e oprimem quase como uma questão de consciência. Nos séculos XVII e XVIII até a Grande Revolução, assim como hoje, eles comandaram a Europa e tudo funcionou como eles queriam. Cremos que sua dominação não pode mais continuar.
Enquanto estes líderes iludem e enganam o povo deliberadamente, seus servos, os instrumentos da Igreja e do Estado, zelosamente dedicam-se a manter a santidade e a integridade destas terríveis instituições. Se a Igreja é necessária para a salvação da alma, como afirmam os padres e a maioria dos estadistas, o Estado é, por sua vez, necessário para a conservação da paz, ordem e justiça. Proclamam os dogmáticos de todas as classes: “Sem a Igreja e o Estado, não haveria civilização nem progresso”.
Não há necessidade de discutir o problema da salvação eterna já que não acreditamos na imortalidade da alma. Estamos convencidos de que o pior mal, tanto para a humanidade quanto para a verdade e o progresso, é a Igreja. Poderia ser de outra forma? Pois não cabe à Igreja a tarefa de perverter as gerações mais novas e especialmente as mulheres? Não é ela que, através de seus dogmas, suas mentiras, sua estupidez e sua ignomínia tenta destruir o pensamento lógico e a ciência? Não é ela que ameaça a dignidade do homem, pervertendo suas ideias sobre o que é bom e o que é justo? Não é ela que transforma os vivos em cadáveres, despreza a liberdade e prega a eterna escravidão das massas em benefício dos tiranos e dos exploradores? Não é essa mesma Igreja implacável que procura perpetuar o reino das sombras, da ignorância, da pobreza e do crime?
Se não quisermos que o progresso seja, em nosso século, um sonho mentiroso, devemos acabar com a Igreja.
Via: www.bibliotecaanarquista.org
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