A Plataforma organizacional da União Geral dos Anarquistas (Projeto)

Em 2016 comemoram-se 90 anos da primeira publicação da chamada Plataforma, que é aqui apresentada, neste momento, numa nova tradução ao português. “A Plataforma Organizacional da União Geral dos Anarquistas” foi publicada originalmente na França, em 1926, na revista Dielo Truda, pelo Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro, do qual participavam Nestor Ivánovitch Makhno, Piotr Andreyevich Arshinov, Ida Mett (pseudônimo de Ida Gilman), Jean Walecki (pseudônimo de Isaak Gurfinkiel) e Maxime Ranko (pseudônimo de Benjamin Goldberg).

Difundido no Brasil pelo menos desde o fim dos anos 1990, este documento teve sua tradução ao português realizada pela Federação Anarquista Gaúcha (FAG), foi publicado pela editora Luta Libertária no livro Anarquia e Organização, de Nestor Makhno, em 2001, e também disponibilizado na internet. Como em outros países, a Plataforma exerceu e continua a exercer influência considerável em parte relevante da militância anarquista brasileira.

Esta tradução, assim como uma versão alternativa que surgiu posteriormente, tomou por base os documentos derivados da primeira tradução do russo ao francês realizada por Volin [Vsevolod Mikhaïlovitch Eichenbaum], um franco opositor da Plataforma, logo após sua publicação.

Conforme aponta Alexandre Skirda no livro Autonomie Individuelle et Force Collective: les anarchistes et l’organization de Proudhon à nos jours (Paris: A.S., 1987, pp. 245-246): “Lembremos que a primeira tradução [da Plataforma] efetuada por Volin foi contestada por ser ‘ruim e desajeitada’, não tendo o tradutor ‘tomado cuidado de adaptar a terminologia, as frases, ao espírito do movimento francês’.” [Le Libertaire 106, 15/04/1927] Skirda, que é também tradutor russo, continua: “Procuramos saber a que podiam aplicar-se essas censuras e encontramos, com efeito, vários termos conscientemente deformados: napravlenie, que significa tanto ‘direção’ como ‘orientação’, foi sistematicamente empregado no primeiro sentido; idem para o termo rukovodstvo, que significa ‘conduta’, e o verbo que nele originou-se, ‘conduzir, guiar, administrar, dirigir’, foi também sistematicamente traduzido como ‘dirigir’. O caso é ainda mais flagrante na última frase da Plataforma, zastrelchtchik, que significa ‘instigador’, foi traduzido como ‘vanguarda’. Foi assim que, por leves pinceladas, o sentido profundo do texto pôde ser alterado.”

Baseado em tal crítica, Skirda apresentou neste livro, no fim dos anos 1980, um conjunto de anexos, em meio ao qual se encontra uma nova tradução da Plataforma, que buscou solucionar estes problemas e, nas palavras citadas, “adaptar a terminologia, as frases, ao espírito do movimento francês”. Esta tradução, sem dúvida, possui a enorme virtude de ser a precursora de todas as retraduções que têm sido feitas, mas ela também não está isenta de problemas. Dentre eles, o maior parece ser uma excessiva liberdade do tradutor para adaptar trechos e termos, fugindo bastante daquilo que se encontra no original. Por exemplo, a palavra “libertário” e suas derivações, que não existem no original, aparecem inúmeras vezes nesta tradução.

Em meados dos anos 2000, o exercício de retradução iniciado por Skirda teve continuidade em outros idiomas. Frank Mintz revisou e corrigiu a tradução ao espanhol a partir do original russo, assim como Nestor McNab, que fez o mesmo com a tradução ao italiano. Desde aquele momento, eu pensava em fazer o mesmo com a tradução ao português. Cheguei inclusive esboçar uma tradução da versão espanhola de Mintz e a encomendar uma tradução da versão francesa de Skirda; no entanto, ambas permaneceram inéditas. Isso porque, ao fim e ao cabo, pensei que não valeria a pena trabalhar com uma tradução da tradução que, mesmo que fosse melhor do que a que tínhamos, não seria uma tradução mais definitiva.

Há alguns anos, decidi investir numa tradução ao português diretamente do russo. Para tanto, parecia fundamental conseguir uma cópia original da revista Dielo Truda, visto que a única versão da Plataforma em russo era aquela que se encontrava no Nestor Makhno Archive, e que poderia não corresponder à original. Por meio de uma longa pesquisa na internet e do contato com colegas de várias partes do mundo, constatei que muito provavelmente não havia uma versão digitalizada dos números de Dielo Truda em que a Plataforma foi publicada. Depois de uma longa busca, consegui, no Instituto de História Social de Amsterdã (IIHS), saber da existência dos originais da revista, buscar os números respectivos e encomendar sua digitalização.

Tentamos realizar a tradução da Plataforma ao português por meio de um procedimento metódico e rigoroso. Ina Hergert, tradutora responsável, discutiu comigo termo a termo do documento original e chegamos a um texto final em português; nos casos de dúvida, fiz o cotejamento com a versão em francês, mas, especialmente, com as versões em espanhol e italiano.

Houve também uma difícil decisão que eu – como responsável pela revisão, pela preparação e pela coordenação do projeto – tive de tomar. Em geral, nas traduções, revisões e preparações que realizo, ajusto o texto o máximo possível, fazendo com que pareça (ou quase) que foi redigido em português. Entretanto, no caso da Plataforma, tendo em vista os problemas históricos de tradução, decidi proceder de outra maneira.

O mais adequado pareceu-me deixar o texto – cujo original em russo possui muitos trechos estranhos, desconexos, repetitivos, de duplo sentido ou mesmo mal escritos – bem próximo do original, intervindo o mínimo possível. Este procedimento possui suas virtudes, especialmente aquela de dar uma clareza ao leitor em relação ao original; mas ele também possui o problema de ficar um tanto “truncado” em português e, em alguns momentos, parecer mesmo que não teve o devido tratamento. Com relação aos termos que poderiam gerar alguma polêmica, como estes que foram mencionados por Skirda, eu e Ina Hergert resolvemos proceder com notas explicativas, deixando evidente ao leitor nossas escolhas e mostrando outras possibilidades.

Com isso, chegamos ao resultado final que o leitor conhecerá a seguir. Mesmo que tenhamos feito o melhor possível, este trabalho pode conter erros e, neste caso, ser futuramente aprimorado. Entendemos, ainda assim, que temos agora, em português, uma versão atualizada e livre dos problemas anteriormente criticados.

Que esta nova tradução possa contribuir com o aprofundamento deste capítulo tão importante da história do anarquismo e, ao mesmo tempo, com o legado daqueles que, ainda hoje, consideram que a Plataforma tem algo a dizer.

2016

A PLATAFORMA ORGANIZACIONAL DA UNIÃO GERAL DOS ANARQUISTAS (PROJETO)

GRUPO DE ANARQUISTAS RUSSOS NO ESTRANGEIRO – Dielo Truda

INTRODUÇÃO

Anarquistas!

É significativo que, a despeito da força e do caráter incontestavelmente positivo das ideias anarquistas, da franqueza e da integridade das posições anarquistas diante da revolução social, e, enfim, do heroísmo e dos inumeráveis sacrifícios demonstrados pelos anarquistas na luta pelo comunismo anarquista, o movimento anarquista, apesar de tudo isso, tenha sempre permanecido fraco, e tenha sido, na maioria das vezes na história das lutas da classe trabalhadora, um pequeno fato, um episódio, e não um fator importante.

Essa contradição entre o fundamento positivo e a incontestável validade das ideias anarquistas, e o estado miserável em que se encontra o movimento anarquista, possui sua explicação em um conjunto de causas, cuja principal é a ausência de princípios e de relações organizacionais no mundo anarquista.

Em todos os países, o movimento anarquista é composto por organizações locais, com ideologia e tática contraditórias, sem perspectivas de futuro ou de continuidade no trabalho, e que habitualmente desaparecem quase sem deixar vestígio.

Tal estado do anarquismo revolucionário, considerado em sua totalidade, só pode ser qualificado de uma maneira: desorganização geral crônica. Como a febre amarela, esta desorganização introduziu-se no organismo do movimento anarquista e o tem estremecido há décadas.

Sem dúvida, no entanto, essa desorganização tem suas origens em algumas deficiências de ordem ideológica; na falsa interpretação do princípio da individualidade no anarquismo, que o associa à irresponsabilidade. Aqueles que amam atuar em seu próprio favor, com vistas ao prazer pessoal, agarram-se obstinadamente ao estado caótico do movimento anarquista e referem-se, para defendê-lo, aos princípios imutáveis do anarquismo e dos seus grandes pensadores.

Entretanto, os princípios imutáveis e os pensadores dizem justamente o contrário. A dispersão é o início da morte; a coesão é a garantia da vida e do desenvolvimento. Esta lei da luta social aplica-se tanto às classes quanto aos partidos.

O anarquismo não é uma bela fantasia retirada da imaginação de um filósofo, mas um movimento social das massas trabalhadoras. Por isso mesmo, deve reunir suas forças em uma organização geral que atue constantemente, segundo as exigências da realidade e da estratégia da luta social de classes.

“Estamos convencidos”, diz Kropotkin, “que a formação de um partido anarquista na Rússia, longe de ser algo nocivo à obra revolucionária comum, é, ao contrário, altamente desejável e útil.” (Prefácio à La Commune de Paris, de Bakunin, edição de 1892)

Bakunin também nunca se opôs à uma organização geral anarquista. Ao contrário, suas aspirações organizacionais e sua atividade na Primeira Internacional operária permitem que ele seja visto como um partidário ativo de tal organização.

Em geral, quase todos os militantes ativos do anarquismo lutaram contra o trabalho “disperso” e desejaram um movimento anarquista coeso pela unidade de objetivo e táticas.

Foi durante a Revolução Russa de 1917 que a necessidade de uma organização geral fez-se sentir mais clara e imperiosamente. Durante esta revolução, o movimento anarquista mostrou o mais elevado grau de fragmentação e confusão. A ausência de uma organização geral levou muitos militantes do anarquismo às fileiras bolcheviques e tem mantido muitos em estado de passividade, impedindo toda manifestação de suas forças, as quais, por vezes, são enormes.

Temos a necessidade vital de uma organização que, reunindo a maioria dos participantes do movimento anarquista, estabeleceria para o anarquismo uma linha geral tática e política, e serviria, assim, de orientação (nap) a todo o movimento.

É hora do anarquismo sair do pântano da desorganização, pôr fim às intermináveis vacilações nas questões teóricas e táticas mais importantes, tomar resolutamente o caminho do objetivo clara e conscientemente concebido e de uma prática coletiva organizada.

Entretanto, não basta reconhecer a necessidade vital de tal organização; é necessário estabelecer o método para sua criação.

Rejeitamos, por considerá-la teórica e praticamente inepta, a noção de criar uma organização segundo a receita da Síntese, isto é, uma organização de adeptos das diferentes tendências do anarquismo. Tal organização, ao incorporar elementos teóricos e práticos heterogêneos, seria apenas um amálgama mecânico de indivíduos, com posições diferentes em relação a todas as questões do movimento anarquista. Este amálgama desagregar-se-ia inevitavelmente na primeira vez que fosse posto à prova.

O método anarcossindicalista não resolve o problema organizacional do anarquismo, pois não dá prioridade a ele; ocupa-se, principalmente, da ideia de sua penetração e de seu reforço nos meios operários. No entanto, não se pode fazer muita coisa nestes meios, mesmo estando neles estabelecido, sem uma organização geral anarquista.

O único método que conduz à solução do problema da organização geral é, a nosso ver, a reunião dos militantes ativos do anarquismo com base em posições precisas: ideológicas, táticas e organizacionais, isto é, com base em um programa homogêneo mais ou menos acabado.

A elaboração de tal programa é uma das principais tarefas que a luta social dos últimos anos impõe aos anarquistas. Foi a esta tarefa que o Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro dedicou parte importante de seus esforços.

A Plataforma Organizacional publicada a seguir constitui a estrutura, o esqueleto de tal programa. Ela deve servir como um primeiro passo rumo à união das forças anarquistas em uma única coletividade revolucionária ativa e capaz de atuar: a União Geral dos Anarquistas.

Não criemos a ilusão de que esta plataforma não possui lacunas. Sem dúvida, as lacunas existem em qualquer iniciativa nova, prática e, ao mesmo tempo, responsável. É possível que certas posições essenciais não estejam nela presentes, que algumas outras estejam ali insuficientemente desenvolvidas, ou que outras, ainda, estejam, ao contrário, demasiadamente detalhadas ou repetidas. Tudo isso é possível, mas não é importante. O que importa é estabelecer os fundamentos de uma organização geral. Este objetivo é alcançado na medida necessária pela presente plataforma. Cabe à coletividade inteira, à União Geral dos Anarquistas, ampliá-la, aprofundá-la e fazer dela um programa completo para todo o movimento anarquista.

Também não nos equivoquemos numa outra questão. Prevemos que vários representantes do assim chamado individualismo e do anarquismo caótico nos atacarão, espumando, e nos acusarão de ter rompido com os princípios anarquistas. Contudo, sabemos o que os elementos individualistas e caóticos compreendem por “princípios anarquistas”: o desleixo, a libertinagem e a irresponsabilidade, os quais provocaram em nosso movimento feridas quase incuráveis, e contra os quais temos lutado com toda energia e toda paixão. Por isso, podemos, com toda a tranquilidade, ignorar os ataques provenientes deste campo.

Depositamos nossas esperanças em outros militantes: naqueles que permaneceram fiéis ao anarquismo, que viveram a tragédia do movimento anarquista e que buscam dolorosamente uma saída.

Temos grandes esperanças na juventude anarquista, nascida sob o sopro da Revolução Russa e envolvida desde o início com os problemas construtivos, que, portanto, exigirá inevitavelmente a realização dos princípios positivos e organizacionais no anarquismo.

Convidamos todas as organizações anarquistas russas dispersas nos diversos países do mundo, bem como os militantes anarquistas isolados, a unirem-se em um único coletivo revolucionário, tomando por base uma plataforma organizacional comum.

Que esta plataforma possa servir de palavra de ordem revolucionária e de ponto de união para todos os militantes do movimento anarquista russo! Que ela possa marcar o início da União Geral dos Anarquistas!

Viva o movimento anarquista organizado!

Viva a União Geral dos Anarquistas!

Viva a revolução social dos trabalhadores do mundo!

Grupo de Anarquistas Russos no Estrangeiro

Piotr Arshinov, secretário do grupo

20 de junho de 1926

PARTE GERAL

I. A LUTA DE CLASSES, SEU PAPEL E SEU SIGNIFICADO

Não há uma humanidade unitária.

Há uma humanidade de classes:

escravos e amos.

Assim como todas aquelas que a precederam, a sociedade burguesa e capitalista contemporânea não é unitária. Ela está cindida em dois campos muito diferenciados socialmente, por sua posição e sua função: o proletariado (no sentido amplo do termo) e a burguesia.

Desde sempre, o destino do proletariado é carregar o fardo de um trabalho físico pesado, cujos frutos, contudo, não retornam a ele, mas a uma outra classe, privilegiada, que possui a propriedade, o poder e os produtos da cultura (ciência, educação, arte): a burguesia.

A escravização social e a exploração das massas trabalhadoras constituem a base sobre a qual se apoia a sociedade contemporânea e sem a qual ela não pode existir.

Esse fato gerou uma luta de classes secular – assumindo ora um caráter aparente e violento, ora invisível e discreto –, que esteve essencialmente voltada para a transformação da sociedade contemporânea em uma sociedade que respondesse às necessidades e à concepção de justiça dos trabalhadores.

Toda a história humana representa, no campo social, uma cadeia ininterrupta de lutas das massas trabalhadoras por seus direitos, por sua liberdade e por uma vida melhor. Na história das sociedades humanas, foi sempre esta luta de classes o principal fator na determinação da forma e da estrutura destas sociedades.

O regime social e político de qualquer país é, antes de tudo, produto da luta de classes. Sua estrutura indica em que ponto e em que estado encontra-se a luta de classes. A mínima mudança no curso da luta de classes, na correlação de forças das classes em luta, produz imediatamente mudanças nos tecidos e nas estruturas da sociedade de classes.

Tal é o sentido geral e universal da luta de classes na vida das sociedades de classes.

II. A NECESSIDADE DE UMA REVOLUÇÃO SOCIAL VIOLENTA

O princípio da escravização e da exploração das massas pela violência constitui a base da sociedade contemporânea. Todos os campos desta sociedade – a economia, a política, as relações sociais – apoiam-se na violência de classe, cujos órgãos oficiais são as autoridades, a polícia, o exército, o tribunal. Tudo, nesta sociedade, desde uma fábrica até todo o sistema de Estado, conforma uma fortaleza do capital. Nela, os trabalhadores são constantemente vigiados e as forças estão sempre prontas para reprimir todo movimento dos trabalhadores que ameace, em qualquer medida, os fundamentos ou mesmo a tranquilidade da sociedade contemporânea.

Ao mesmo tempo, o sistema desta sociedade mantém automaticamente as massas trabalhadoras em estado de ignorância e estagnação mental; ele impede, pela força, a elevação de seu nível intelectual e cultural, a fim de lidar mais facilmente com elas.

O progresso da sociedade contemporânea – a evolução técnica do capital e o aperfeiçoamento de seu sistema político – fortalece o poder das classes dominantes e torna mais difícil a luta contra elas, adiando o momento decisivo da libertação do trabalho.

A análise da sociedade contemporânea leva-nos à conclusão de que não existe outra via para transformar a sociedade capitalista em uma sociedade de trabalhadores livres senão a da revolução social violenta.

III. O ANARQUISMO E O COMUNISMO ANARQUISTA

A luta de classes, criada pela escravidão dos trabalhadores e suas aspirações por liberdade, gerou entre os oprimidos a ideia do anarquismo: a ideia da negação completa do sistema social de classes e de Estado, e de sua substituição por uma sociedade livre, sem Estado e de trabalhadores que administram a si mesmos.

Assim, o anarquismo não emergiu das reflexões abstratas de um cientista ou de um filósofo, mas da luta direta dos trabalhadores contra o capital, das suas necessidades e exigências, dos seus aspectos psicológicos, das suas aspirações à liberdade e à igualdade; de tudo aquilo que as massas trabalhadoras vivenciam nas melhores e heroicas épocas de suas vidas e lutas. Os pensadores proeminentes do anarquismo – Bakunin, Kropotkin e outros – não criaram a ideia do anarquismo, mas, encontrando-a nas massas, ajudaram, pela força de seu pensamento e de seus conhecimentos, a precisá-la e a difundi-la.

O anarquismo não é produto de criações ou de práticas individuais.

Do mesmo modo, o anarquismo não é, em absoluto, produto de aspirações humanas universais. A humanidade unitária não existe. Qualquer tentativa de fazer o anarquismo pertencer a toda humanidade, tal como atualmente se faz, de atribuir-lhe um caráter humano universal, constitui uma mentira histórica e social, que resulta inevitavelmente na justificação da ordem atual e de uma nova exploração.

O anarquismo é universalmente humano apenas no sentido de que os ideais das massas trabalhadoras revitalizam a vida de todos os homens, e que o destino da humanidade de hoje ou de amanhã está ligado ao destino do trabalho escravizado. Se as massas trabalhadoras vencerem, a humanidade inteira renascerá. Se não vencerem, a violência, a exploração, a escravidão e a opressão voltarão a reinar como antes no mundo.

O nascimento, o florescimento e a realização dos ideais anarquistas têm suas raízes na vida e na luta das massas trabalhadoras, e estão inseparavelmente ligados ao seu destino.

O anarquismo aspira a transformar a sociedade contemporânea burguesa e capitalista em uma sociedade que proporcione aos trabalhadores os produtos de seu trabalho, a liberdade, a independência, a igualdade social e política. Esta sociedade é o comunismo anarquista. Ele contém a plena expressão, não somente da solidariedade social, mas também da livre individualidade, desenvolvendo ambas as ideias em estreita relação.

O comunismo anarquista considera que o único criador de todos os valores sociais é o trabalho, físico e intelectual, e somente ele tem o direito de gerir toda a vida econômica e social. Portanto, o comunismo anarquista de modo algum justifica ou admite a existência de classes não trabalhadoras.

Se estas classes subsistirem no comunismo anarquista, este último não assumirá deveres para com elas. Somente quando as classes não trabalhadoras decidirem tornar-se produtivas e quiserem viver em uma sociedade de comunismo anarquista nas mesmas condições que os demais, elas ocuparão um lugar análogo ao de todos, isto é, a posição de membros livres da sociedade, que desfrutam dos mesmos direitos e têm os mesmos deveres que todos desta sociedade.

O comunismo anarquista aspira a eliminação de toda exploração e de toda violência contra o indivíduo e as massas trabalhadoras. Com esta finalidade, ele estabelece uma base econômica e social que unifica em um conjunto toda a vida econômica e social do país, assegurando a cada indivíduo uma situação igual aos demais e proporcionando o máximo de benefícios. Esta base significa pôr em comum, sob forma de socialização, todos os meios e instrumentos de produção (indústria, transporte, terra, matérias-primas etc.) e construir organismos econômicos populares sobre o princípio da igualdade e da autoadministração das classes trabalhadoras.

Nos limites dessa sociedade autoadministrada de trabalhadores, o comunismo anarquista estabelece o princípio da igualdade de valores e direitos de cada indivíduo (não da individualidade “em geral”, nem da “individualidade mística” ou da ideia de individualidade).

Deste princípio de igualdade de valores e direitos, e também do fato segundo o qual o valor do trabalho de cada indivíduo não pode ser medido e nem estimado, decorre o princípio fundamental – social, jurídico e econômico – do comunismo anarquista: “De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.

IV. A NEGAÇÃO DA DEMOCRACIA

A democracia apresenta-se como uma das formas da sociedade capitalista e burguesa.

A base da democracia é a manutenção das classes antagônicas da sociedade contemporânea – a do trabalho e a do capital – e de sua colaboração sobre o fundamento da propriedade privada capitalista. A expressão desta colaboração é o parlamento e o governo representativo nacional.

Formalmente, a democracia proclama a liberdade de expressão, de imprensa, de associação e a igualdade de todos perante a lei.

No entanto, todas essas liberdades têm um caráter muito relativo: elas são toleradas enquanto não contradizem os interesses da classe dominante, ou seja, da burguesia.

A democracia mantém intacto o princípio da propriedade privada capitalista. Com isso, ela reserva à burguesia o direito de manter em suas mãos toda a economia do país, a imprensa, a educação, a ciência, a arte; o que, de fato, torna a burguesia senhora absoluta do país. Com o monopólio da economia, a burguesia pode estabelecer seu poder absoluto e ilimitado também no campo político. Na verdade, nas democracias, o parlamento e o governo representativo são órgãos executivos da burguesia.

Portanto, a democracia é um dos aspectos da ditadura burguesa, mascarada sob fórmulas enganadoras e fictícias de liberdades políticas e garantias democráticas.

V. A NEGAÇÃO DO ESTADO E DO PODER

Os ideólogos da burguesia definem o Estado como o órgão regulador das complexas relações sociais, políticas e civis entre os homens no seio da sociedade contemporânea, e que protege a ordem e as leis desta sociedade. Os anarquistas estão perfeitamente de acordo com esta definição, mas a complementam, afirmando que, na base desta ordem e destas leis está a escravização da enorme maioria do povo por uma minoria insignificante, e que é precisamente para esta obra de escravização que serve o Estado contemporâneo.

O Estado é, simultaneamente, a violência organizada e o órgão executivo da burguesia contra os trabalhadores.

Os socialistas de esquerda, em particular os bolcheviques, também consideram o poder e o Estado burguês servidores do capital. Entretanto, eles sustentam que o poder e o Estado podem servir, nas mãos dos partidos socialistas, como um poderoso meio na obra de libertação do proletariado. Por esta razão, são favoráveis a um poder socialista e a um Estado proletário. Uns querem conquistar o poder por meios pacíficos, parlamentares (os socialdemocratas), e outros pela via revolucionária (os comunistas, os socialistas revolucionários de esquerda).

O anarquismo considera ambas as posições fundamentalmente errôneas e nefastas para a obra de libertação do trabalho.

O poder sempre está ligado à exploração e à escravização das massas populares. Ele nasce desta exploração ou é criado para ela. O poder sem a violência e a exploração perde todo seu fundamento.

O Estado e o poder retiram das massas a iniciativa, mortificam o espírito de atividade livre e criativa, cultivam nelas a mentalidade servil de submissão, de expectativa e de esperança nos superiores e nos chefes. A libertação dos trabalhadores só é possível com um processo de luta revolucionária direta das vastas massas trabalhadoras e de suas organizações de classe contra o sistema capitalista.

A conquista do poder pelos partidos socialdemocratas, por vias parlamentares e nos marcos da ordem contemporânea, não fará avançar um único passo a obra de libertação do trabalho, pela razão de que a potência real, e por consequência o poder real, permanecerá com a burguesia, que manterá em suas mãos toda a economia e a política do país. O papel do poder socialista, neste caso, resume-se às reformas, à melhoria deste mesmo regime burguês. (Exemplos: Mac-Donald, os partidos socialdemocratas da Alemanha, da Suécia e da Bélgica, que alcançaram o poder na sociedade capitalista).

A tomada do poder durante um processo revolucionário e a organização do assim chamado “Estado proletário” também não podem servir à obra da autêntica libertação do trabalho. O Estado, construído de início pretensamente para a defesa da revolução, adquire inevitavelmente necessidades e características próprias, tornando-se ele mesmo sua própria finalidade e cultivando castas sociais privilegiadas, sobre as quais passa a apoiar-se. Ele submete as massas violentamente às suas necessidades e àquelas das castas privilegiadas e, assim, restabelece o fundamento do poder e do Estado capitalistas: a escravização e a exploração habituais das massas por meio da violência. (Exemplo: o Estado “operário e camponês” dos bolcheviques).

VI. O PAPEL DAS MASSAS E O PAPEL DOS ANARQUISTAS NA LUTA SOCIAL E NA REVOLUÇÃO SOCIAL

As principais forças da revolução social são: a classe trabalhadora da cidade, os camponeses e uma parte da intelligentsia trabalhadora.

Observação: Embora sendo uma classe oprimida e explorada, assim como o proletariado das cidades e dos campos, a intelligentsia trabalhadora é relativamente mais desunida que os operários e os camponeses, graças aos privilégios econômicos concedidos pela burguesia a alguns de seus elementos. Por isso, nos primeiros dias da revolução social, os militantes ativos poderão vir somente das camadas menos abastadas da intelligentsia. O papel das massas na revolução social e na construção do socialismo difere, caracteristicamente, daquele dos partidos estatistas. Enquanto o bolchevismo e as correntes a ele relacionadas consideram que a massa trabalhadora possui somente instintos revolucionários destrutivos, sendo incapaz de realizar uma atividade revolucionária criativa – por tal razão, esta atividade criativa deve ser passada às pessoas reunidas no Estado ou no comitê central do partido –, os anarquistas, ao contrário, consideram que a massa trabalhadora traz em si enormes possibilidades criativas e aspiram a eliminar os obstáculos que impedem sua manifestação.

Os anarquistas consideram precisamente o Estado como o principal obstáculo, que usurpa todos os direitos das massas e retira-lhes quase todas as funções da vida econômica e social. O Estado deve morrer, não em algum momento na sociedade futura. Ele deve ser destruído pelos trabalhadores no primeiro dia de sua vitória e não deve ser restabelecido de forma alguma. Deve ser substituído por um sistema federalista e autoadministrado das organizações de produção e de consumo dos trabalhadores. Este sistema exclui tanto a organização do poder quanto a ditadura de um ou outro partido. A Revolução Russa de 1917 estabeleceu precisamente essa orientação(nap) do processo de libertação social, com a criação do sistema dos sovietes de operários e camponeses e dos comitês de fábrica. Foi um triste erro ela não ter liquidado, no devido momento, a organização do poder de Estado – inicialmente do governo provisório, e, em seguida, do poder bolchevique. Os bolcheviques, aproveitando-se da confiança dos operários e dos camponeses, reorganizaram o Estado burguês de acordo com as circunstâncias do momento, e, em seguida, mataram, com a ajuda deste Estado, a criação das massas: o regime livre dos sovietes e dos comitês de fábrica, que esboçava os primeiros passos rumo à construção não estatista. A ação dos anarquistas divide-se em dois períodos: o pré-revolucionário e o revolucionário. Num e noutro caso, os anarquistas poderão desempenhar seu papel somente como uma força organizada, provida de uma concepção clara dos objetivos de sua luta e das vias que conduzem à realização destes objetivos.

No período pré-revolucionário, a tarefa fundamental da União Geral dos Anarquistas é a preparação dos operários e dos camponeses para o processo revolucionário.

Negando a democracia formal (burguesa), o poder e o Estado, proclamando a completa libertação do trabalho, o anarquismo acentua ao máximo os rigorosos princípios da luta de classes, desenvolve nas massas a consciência de classe e a intransigência revolucionária de classe.

É precisamente no espírito da intransigência de classe, do antidemocratismo, do antiestatismo e dos ideais do comunismo anarquista que a educação anarquista das massas deve ser conduzida. Mas só a educação não é suficiente. É necessária uma certa organização anarquista das massas. Para realizá-la, o trabalho deve ser conduzido em dois sentidos: no plano da seleção e do agrupamento das forças revolucionárias operárias e camponesas sobre a base do anarquismo (organizações fundamentadas em ideias anarquistas), e no plano do agrupamento dos operários e dos camponeses revolucionários sobre a base da produção e do consumo (organizações de produção dos operários e dos camponeses revolucionários, cooperativas operárias e camponesas livres entre outras).

A classe operária e camponesa, organizada sobre a base da produção e do consumo, e penetrada pela ideologia revolucionária do anarquismo, será o primeiro ponto de apoio da revolução social. Quanto mais a consciência e a organização anarquistas forem a elas levadas, mais elas manifestarão orientação(nap), estabilidade e criatividade anarquistas no momento da revolução.

Quanto à classe trabalhadora na Rússia – após oito anos da ditadura dos bolcheviques, que acorrentou as necessidades naturais de livre atividade das massas e demonstrou, melhor do que em qualquer outro caso, a verdadeira natureza de todo poder –, ela possui enormes possibilidades de formar um movimento de massas anarquista e anarcossindicalista. Os militantes anarquistas organizados devem ir imediatamente, com a plenitude de suas forças, ao encontro destas necessidades e possibilidades, a fim de não lhes permitir degenerar em menchevismo. Com a mesma urgência, os anarquistas devem aplicar-se, com a plenitude de suas forças, na organização do campesinato pobre, que é esmagado pelo poder, busca uma saída e possui enormes possibilidades revolucionárias.

O papel dos anarquistas no período revolucionário não pode limitar-se somente à propaganda de palavras de ordem e de ideias anarquistas.

A vida não se apresenta somente como arena de propaganda de tal ou qual grupo, mas também, na mesma medida, como arena de luta, de estratégia e de aspiração destas ideias a tornarem-se guias(ruk). Mais do que qualquer outra ideia, o anarquismo deve tornar-se a ideia-guia(ruk) na revolução social, pois é somente sobre a base das ideias do anarquismo que a revolução social resultará na libertação plena do trabalho. A posição de guia(ruk) das ideias anarquistas na revolução significa, ao mesmo tempo, uma condução(ruk) dos acontecimentos pelas ideias anarquistas. Entretanto, não se deve confundir esta condução(ruk) com a direção(ruk) política dos partidos estatistas, que desemboca, finalmente, na direção(ruk) do Estado.

O anarquismo não aspira a conquista do poder político, a ditadura. Sua principal aspiração é ajudar as massas a tomar a autêntica via da revolução social e da construção socialista. Mas não basta que as massas tomem a via da revolução social. É necessário também manter esta orientação(nap) da revolução e de seus objetivos: a supressão da sociedade capitalista em nome da sociedade de trabalhadores livres. Como nos mostrou a experiência da Revolução Russa de 1917, esta tarefa não é fácil, principalmente em vista dos numerosos partidos que buscam orientar(nap) o movimento num sentido oposto ao da revolução social.

Ainda que, nos movimentos sociais, as massas convivam profundamente com as tendências e palavras de ordem anarquistas, estas permanecem dispersas, sem relação com um sistema determinado. Portanto, não têm a força organizada e direcionada(ruk) das ideias, que é necessária para preservar a orientação(nap) e os objetivos anarquistas na revolução social. Esta força condutora(ruk) das ideias só pode ser criada por um coletivo especialmente escolhido pelas massas. Este coletivo será a força anarquista organizada e o movimento anarquista organizado.

Os deveres relativos às ideias e à prática desse coletivo – isto é, a União Geral dos Anarquistas –, no momento da revolução, são consideráveis. Ele deve tomar a iniciativa e participar plenamente de todos os âmbitos da revolução social: orientação(nap) e caráter geral da revolução, guerra civil e defesa da revolução, tarefas positivas da revolução, questões da nova produção, do consumo, da terra etc.

Sobre todas essas questões, e sobre muitas outras, as massas exigirão dos anarquistas respostas claras e precisas. E, quando os anarquistas forem apresentar a ideia de revolução anarquista e de construção da sociedade anarquista, serão obrigados a dar respostas exatas a todas estas questões, conectar a solução destes problemas à ideia geral do anarquismo e dedicar todas as suas forças para traduzi-las em vida.

Nesse caso, a União Geral dos Anarquistas e o movimento anarquista cumprirão plenamente seu papel de guia de ideias na revolução social.

[VII.] O PERÍODO DE TRANSIÇÃO

Por período de transição, os partidos políticos socialistas compreendem uma determinada fase na vida de um povo, que se caracteriza pela ruptura com a antiga ordem e pela instauração de um novo sistema econômico e político, o qual, todavia, ainda não contém em si a completa libertação dos trabalhadores.

Nesse sentido, todos os programas mínimos dos partidos políticos socialistas – por exemplo, o programa democrático dos socialistas oportunistas ou o programa da “ditadura do proletariado” dos comunistas – são programas de período de transição.

O aspecto essencial destes programas mínimos é que eles consideram impossível, momentaneamente, a completa realização dos ideais dos trabalhadores: sua independência, sua liberdade, sua igualdade. Assim, se mantém uma série de instituições do sistema capitalista: o princípio da coerção estatista, a propriedade privada dos meios e dos instrumentos de produção, o salariato e muitas outras, dependendo dos objetivos previstos num ou noutro programa dos partidos.

Os anarquistas sempre se opuseram, por princípio, a tais programas, considerando que a construção desses sistemas transitórios envolve os princípios de exploração e de coerção das massas – as quais terminam detidas por estes sistemas – e conduz inevitavelmente a um novo crescimento da escravidão.

Em vez dos programas políticos mínimos, os anarquistas defenderam sempre e somente a ideia de revolução social, que privaria a classe capitalista dos privilégios políticos e econômicos e passaria os meios e os instrumentos de produção, assim como todas as funções da vida econômica e social, às mãos dos trabalhadores.

E até hoje os anarquistas mantêm essa posição. A ideia de período de transição – segundo a qual a revolução social deve resultar, não na sociedade anarquista, mas em algum sistema X, que carrega ainda elementos e reminiscências do antigo sistema capitalista – é antianarquista em essência. Ela contém a ameaça de reforçar e desenvolver estes elementos às suas dimensões originais e de fazer retroceder os acontecimentos.

Um exemplo evidente disso é o regime da “ditadura do proletariado” estabelecido pelos bolcheviques na Rússia. A convicção deles era que este regime deveria ser apenas um passo transitório rumo ao comunismo total. Mas, na realidade, ele levou à restauração da sociedade de classes, com os operários e os camponeses pobres permanecendo, como antes, na parte inferior.

O centro de gravidade na construção da sociedade anarquista não consiste em proporcionar a cada indivíduo, desde o primeiro dia da revolução, a liberdade ilimitada de satisfazer suas necessidades, mas em conquistar a base social desta sociedade e estabelecer os princípios de relações igualitárias entre as pessoas. A questão da maior ou menor abundância de bens não é uma questão de princípio, mas técnica.

O princípio fundamental sobre o qual será construída a nova sociedade – que se tornará o conteúdo desta sociedade, e que não deverá ser restringido de maneira alguma – é a igualdade das relações, a liberdade e a independência dos trabalhadores. Este princípio representa a primeira e mais fundamental demanda das massas; é somente em nome dele que as massas sublevar-se-ão para a revolução social.

De duas, uma: ou a revolução social terminará com a derrota dos trabalhadores e, neste caso, será necessário preparar-se para lutar novamente, para uma nova ofensiva contra o sistema capitalista; ou ela levará à vitória dos trabalhadores e, neste caso, eles – apoderando-se das posições de autoadministração da terra, da produção e das funções sociais – iniciarão a construção da sociedade livre.

Esse será o início da construção da sociedade anarquista que, uma vez começada, seguirá ininterruptamente, fortalecendo-se e aperfeiçoando-se. A tomada das funções produtivas e sociais pelos trabalhadores colocará um limite claro entre a época estatista e a época antiestatista.

Para tornar-se o estandarte das massas em luta e de uma época social-revolucionária, o anarquismo não deve ocultar seus princípios fundamentais – não deve ajustar seu programa às reminiscências antigas, às tendências oportunistas de sistemas e períodos de transição – mas, ao contrário, desenvolvê-los e elevá-los ao máximo.

[VIII.] ANARQUISMO E SINDICALISMO

Consideramos totalmente artificial e privada de todo fundamento e sentido a oposição entre comunismo anarquista e sindicalismo, e vice-versa.

As noções de comunismo e sindicalismo encontram-se em dois planos diferentes. Enquanto o comunismo – isto é, a sociedade livre de trabalhadores iguais – é o objetivo da luta anarquista, o sindicalismo – isto é, o movimento profissional revolucionário de trabalhadores – representa somente uma das formas da luta revolucionária de classes. Unindo os trabalhadores sobre a base da produção, o sindicalismo revolucionário, como qualquer movimento profissional, não tem uma ideologia determinada; ele não tem uma concepção de mundo que responde a todas as complicadas questões sociais e políticas da realidade contemporânea. Ele reflete sempre as ideologias de diversos agrupamentos políticos, em particular daqueles que trabalham mais intensamente em suas fileiras.

Nossa atitude frente ao sindicalismo revolucionário decorre daquilo que acaba de ser dito. Sem resolver aqui, de antemão, a questão do papel dos sindicatos revolucionários no dia seguinte à revolução – isto é, saber se eles serão os organizadores de toda a nova produção, se cederão este papel aos sovietes de operários ou aos comitês de fábrica –, julgamos que os anarquistas devem participar do sindicalismo revolucionário, considerando-o uma das formas do movimento operário revolucionário.

Entretanto, a questão que agora se coloca não é saber se os anarquistas devem ou não participar do sindicalismo revolucionário, mas como e com que objetivo eles devem participar.

Consideramos todo o período precedente, até os nossos dias – quando os anarquistas participavam do movimento sindicalista revolucionário na qualidade de militantes e propagandistas individuais –, como um período de relações artesanais no movimento sindical.

O anarcossindicalismo, visando fortalecer a ideologia anarquista na ala esquerda do sindicalismo revolucionário por meio da criação de sindicatos de tipo anarquista, representa, neste aspecto, um passo adiante; mas, contudo, ele ainda não supera o modo artesanal. O anarcossindicalismo não relaciona obrigatoriamente a obra de anarquização do movimento sindicalista com aquela de organização das forças anarquistas fora deste movimento. No entanto, é somente com a presença desta relação que é possível anarquizar o sindicalismo revolucionário e impedir os desvios rumo ao oportunismo.

Considerando o sindicalismo revolucionário somente um movimento profissional de trabalhadores sem uma ideologia social e política determinada – e, portanto, sem força para resolver por si mesmo a questão social –, estimamos que a tarefa dos anarquistas nas fileiras deste movimento consiste em desenvolver a ideologia anarquista e conduzir este movimento pelas ideias, a fim de transformá-lo em um exército ativo da revolução social. É sempre necessário lembrar que, se o sindicalismo não encontrar apoio oportuno na ideologia anarquista, ele se apoiará, voluntária ou involuntariamente, na ideologia de um partido político estatista qualquer.

Um notável exemplo é o sindicalismo francês, que outrora brilhou pelas palavras de ordem e táticas anarquistas, e que, em seguida, caiu sob a influência dos comunistas e, sobretudo, dos socialistas oportunistas de direita.

Entretanto, a tarefa dos anarquistas nas fileiras do movimento sindical revolucionário só pode ser cumprida se seu trabalho estiver vinculado e coordenado com a atividade da organização anarquista fora do sindicato. Em outras palavras, devemos participar do movimento sindical revolucionário como uma força organizada, respondendo à organização geral anarquista pelo trabalho nos sindicatos e sendo por ela conduzidos(ruk).

Sem nos limitar à criação de sindicatos anarquistas, devemos buscar exercer a influência de nossas ideias em todo o sindicalismo revolucionário, sob todas as suas formas (os I.W.W. [Industrial Workers of the World], as uniões profissionais russas etc.). Só podemos chegar a isso nos colocando no trabalho como coletivo anarquista rigorosamente organizado, e nunca como pequenos grupos artesanais, sem vínculos organizacionais entre si e nem coordenação de ideias. Agrupamentos anarquistas nas fábricas, trabalhando para a criação de sindicatos anarquistas e conduzindo a luta nos sindicatos revolucionários pela preponderância da ideologia anarquista no sindicalismo e pela liderança(ruk) no campo das ideias; agrupamentos orientados(nap) em sua atividade por uma organização geral anarquista, à qual pertencem; tais são o sentido e a forma da relação dos anarquistas com o sindicalismo revolucionário e os movimentos profissionais revolucionários afins.

PARTE CONSTRUTIVA

O PROBLEMA DO PRIMEIRO DIA DA REVOLUÇÃO SOCIAL

O objetivo fundamental do mundo do trabalho em luta é o estabelecimento, por meio da revolução, de uma sociedade anarco-comunista livre, igualitária, fundada sobre o princípio “de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.

Entretanto, essa sociedade, em sua forma final, não se realizará por si mesma, mas somente pela força do processo social revolucionário. Sua realização apresentar-se-á como um processo social-revolucionário mais ou menos prolongado, orientado(nap) pelas forças organizadas do trabalho vitorioso numa determinada via.

Nossa tarefa é indicar desde já esta via, definir as tarefas positivas e concretas que se colocarão aos trabalhadores desde o primeiro dia da revolução social e de cuja solução correta dependerá o destino da própria revolução social.

É evidente que a construção da nova sociedade só será possível após a vitória dos trabalhadores sobre o atual sistema burguês, capitalista e seus representantes. É impossível começar a construção de uma nova economia e de novas relações sociais enquanto a potência do Estado, que defende o regime de escravidão, não tiver sido destruída, enquanto os operários e os camponeses não tiverem tomado em suas mãos, no regime revolucionário, a economia industrial e agrária do país.

Portanto, a primeiríssima tarefa da revolução social é destruir o aparelho estatista da sociedade capitalista, privar do poder a burguesia e, em geral, todos os elementos socialmente privilegiados, estabelecendo em toda parte a vontade dos trabalhadores revoltados, expressada nos princípios fundamentais da revolução social. Esse aspecto destrutivo e combativo da revolução apenas desobstruirá a via para as tarefas positivas, que formam o sentido e a essência da revolução social.

Estas tarefas são as seguintes:

a.) A solução, no sentido anarquista, da questão da produção (industrial) do país.

b.) A solução, no mesmo sentido, da questão agrária.

c.) A solução da questão do abastecimento(pro).[13]

A PRODUÇÃO

Levando em conta que a indústria do país é resultado dos esforços de várias gerações de trabalhadores, e que os diversos ramos da indústria estão estreitamente vinculados entre si, consideramos toda a produção atual como uma única oficina de produtores, que pertence em sua totalidade a todos os trabalhadores e a ninguém em particular.

O mecanismo produtivo do país é unitário e pertence a toda a classe trabalhadora. Essa situação determina o caráter e a forma da nova produção. Ela também será unitária, comum, no sentido de que os produtos elaborados pelos produtores pertencerão a todos. Estes produtos, de qualquer categoria que sejam, constituirão o fundo geral de abastecimento (pro) dos trabalhadores, do qual todo participante da nova produção receberá tudo que for necessário, sobre uma base igualitária para todos.

O novo sistema de produção suprimirá totalmente o salariato e a exploração em todas as suas formas, e estabelecerá em seu lugar o princípio da colaboração solidária dos trabalhadores.

A classe intermediária – que, na atual sociedade capitalista, exerce funções de mediação (comércio e outras) –, assim como a burguesia, deverá participar da nova produção nas mesmas condições que todos os outros. Caso contrário, estas classes colocar-se-ão, elas próprias, fora da sociedade do trabalho.

Não haverá proprietários, seja o empreendedor privado ou o Estado, como é atualmente o Estado dos bolcheviques. Na nova produção, as funções organizacionais passarão aos órgãos de gestão especialmente criados pelas massas trabalhadoras: sovietes operários, comitês de fábrica ou administrações operárias de indústria. Estes órgãos, vinculados entre si no plano de uma cidade, de uma região e, em seguida, de todo o país, formarão órgãos municipais, regionais e, enfim, gerais (federais) de direção(ruk) e gestão da produção. Eleitos pelas massas e encontrando-se constantemente sob seu controle e sua influência, todos estes órgãos serão constantemente renovados, realizando a ideia da autêntica autoadministração das massas.

A produção unificada, cujos meios e produtos pertencem a todos, a substituição do salariato pelo princípio da colaboração solidária, o estabelecimento da igualdade de direitos para todos os produtores e a direção(ruk) da produção por órgãos de gestão dos trabalhadores eleitos pelas massas constituem o primeiro passo prático na via da realização do comunismo anarquista.

O ABASTECIMENTO (pro)

A questão do abastecimento(pro) na revolução surgirá num duplo problema: primeiro, o princípio de busca de produtos(pro); segundo, o princípio de repartição. Quanto à repartição dos produtos(pro), as soluções, neste campo, só podem ser apontadas de forma geral, pois a quantidade de produtos(pro) disponíveis, a coerência com o objetivo e outros fatores possuem um papel importante na resolução desta questão.

A revolução social, encarregando-se da reconstrução de toda a ordem atual, assumirá para si o dever de ocupar-se das necessidades vitais de todas as pessoas. A exceção será o grupo dos não trabalhadores: aqueles que se recusam a participar da nova produção por motivos de ordem contrarrevolucionária. Mas, em geral, com exceção desta última categoria de pessoas, as necessidades de toda a população do território da revolução social serão satisfeitas pelo fundo geral revolucionário de abastecimento(pro). Caso a quantidade de produtos seja insuficiente, eles serão repartidos segundo o princípio da maior urgência, isto é, em primeiro lugar as crianças, os enfermos e as famílias trabalhadoras.

Um problema mais difícil será aquele da organização deste fundo geral revolucionário de abastecimento(pro). Sem dúvida, nos primeiros dias da revolução, as cidades não disporão de todos os produtos(pro) indispensáveis à vida da população. Ao mesmo tempo, os camponeses terão em abundância os produtos(pro) que faltarem nas cidades. Para os anarquistas, não pode haver dúvida quanto ao caráter das relações mútuas de trabalho entre a cidade e o campo. Os anarquistas consideram que a revolução social só pode ser realizada pelos esforços comuns de operários e camponeses. Por consequência, a solução da questão do abastecimento(pro) na revolução só será possível por meio de uma estreita colaboração revolucionária destas duas categorias de trabalhadores.

Para estabelecer essa colaboração, a classe operária da cidade, tendo tomado em suas mãos a produção, deverá ocupar-se imediatamente das necessidades vitais do campo e buscar fornecer os produtos de consumo diário, os meios e as ferramentas para a agricultura coletiva. A preocupação coletiva dos operários em relação às necessidades dos camponeses provocará a mesma resposta destes últimos, que fornecerão coletivamente à cidade os produtos do trabalho rural, primeiramente os alimentícios.

As cooperativas gerais de operários e camponeses serão os primeiros órgãos que servirão às necessidades de abastecimento(pro) e aprovisionamento econômico da cidade e do campo. Encarregadas em seguida de funções mais amplas e constantes – fornecer tudo o que for necessário para a manutenção e o desenvolvimento da vida social e econômica de operários e camponeses –, estas cooperativas poderão ser transformadas em órgãos permanentes de abastecimento(pro) da cidade e do campo.

A questão do abastecimento(pro), assim solucionada, permitirá ao proletariado criar um fundo permanente de abastecimento(pro), que repercutirá favorável e decisivamente no destino de toda a nova produção.

A TERRA

Consideramos como principais forças revolucionárias e criadoras, na solução da questão da terra, os camponeses trabalhadores, que não exploram o trabalho alheio, e o proletariado assalariado do campo. Sua tarefa será realizar a redistribuição geral da terra, a fim de estabelecer sua utilização e sua exploração sob princípios comunistas.

Assim como a indústria, a terra, explorada e cultivada por gerações de trabalhadores, é produto de seus esforços. Ela pertence também a todo o povo trabalhador em seu conjunto e a ninguém em particular. Como propriedade comum dos trabalhadores, a terra também não pode ser objeto de compra e venda, nem de arrendamento; ela não pode servir de meio de exploração do trabalho alheio.

A terra é uma espécie de oficina popular comum, em que o mundo dos trabalhadores produz os meios de subsistência. Mas é um tipo de oficina em que cada trabalhador (camponês) habituou-se, graças a certas condições históricas, a realizar seu próprio trabalho, independentemente dos outros produtores. Enquanto na indústria o método coletivo (comunista) de trabalho é essencialmente necessário e o único possível, na agricultura, atualmente, ele não é o único possível. A maioria dos camponeses utiliza meios individuais de cultivo da terra.

Portanto, quando a terra e os meios para sua exploração passarem aos camponeses, sem a possibilidade de venda e arrendamento, a questão das formas de seu uso e dos meios de sua exploração (comunal ou familiar) não terá de imediato uma solução completa e definitiva, como terá a questão da indústria. Nos primeiros tempos recorrer-se-á, provavelmente, a um e outro destes meios.

Serão os próprios camponeses revolucionários que estabelecerão a forma definitiva da exploração e do uso da terra. Nenhuma pressão externa é possível nessa questão.

Mas, visto que consideramos que somente o modo de vida comunista – em nome do qual será realizada a revolução social – liberta os trabalhadores da injustiça, da exploração e dá-lhes uma completa liberdade e igualdade; visto que os camponeses constituem a maioria esmagadora da população (cerca de 85% na Rússia) e que, por consequência, o regime agrário será o fator decisivo nos destinos da revolução; finalmente, visto que a economia privada no cultivo da terra e a indústria privada levam ao comércio, à acumulação, à propriedade privada e à restauração do capital; nosso dever será fazer, desde já, tudo que for necessário para facilitar a solução da questão da terra num sentido comunista.

Para esse fim, devemos, desde já, conduzir entre os camponeses uma intensa propaganda do uso e da exploração comunista da terra.

A criação de uma união camponesa específica de orientação(nap) anarquista facilitará consideravelmente essa tarefa.

Nesse sentido, o progresso técnico terá enorme importância, facilitando o desenvolvimento da agricultura e a realização do comunismo nas cidades, principalmente na indústria. Se, nas relações com os camponeses, os operários atuarem, não individualmente ou em grupos separados, mas como um imenso coletivo comunista, abarcando ramos inteiros da indústria; se, com isso, eles ocuparem-se das necessidades vitais do campo e se fornecerem a cada vilarejo os instrumentos e as máquinas para a exploração coletiva da terra ao mesmo tempo que os objetos de uso cotidiano, isso dará indubitavelmente aos camponeses um impulso para o comunismo na agricultura.

A DEFESA DA REVOLUÇÃO

A questão da defesa da revolução relaciona-se também ao problema do “primeiro dia”. Na verdade, o meio mais poderoso de defesa da revolução é a solução bem sucedida de seus problemas positivos: aquele da produção, do consumo e da terra. Resolvidos corretamente estes problemas, nenhuma força contrarrevolucionária poderá mudar ou sacudir o regime livre dos trabalhadores. Entretanto, junto a isso, os trabalhadores terão de suportar uma severa luta contra os inimigos da revolução, a fim de defender sua existência concreta. A revolução social, que ameaça os privilégios e a própria existência das classes não trabalhadoras da sociedade atual, provocará, inevitavelmente, uma resistência desesperada destas classes, o que derivará numa guerra civil feroz.

Como demonstrou a experiência da Rússia, tal guerra civil não será uma questão de alguns meses, mas de vários anos.

Por mais bem sucedidos que sejam os primeiros passos dos trabalhadores no início da revolução, as classes dominantes proprietárias conservarão, contudo, por muito tempo, uma enorme capacidade de resistência. Durante vários anos, elas desencadearão ofensivas contra a revolução, buscando reconquistar o poder e os privilégios dos quais foram privadas.

Um exército com numerosos adeptos, a técnica e a estratégia militares, o capital – tudo será lançado contra os trabalhadores vitoriosos.

Para assegurar as conquistas da revolução, estes últimos deverão criar órgãos de defesa da revolução, a fim de opor a tudo isso uma força de combate correspondente. Nos primeiros dias da revolução, essa força combatente será formada por todos os operários e camponeses armados. Entretanto, isso funcionará somente nos primeiros dias, quando a guerra civil ainda não tiver atingido seu ponto culminante, e quando as partes em luta ainda não tiverem criado organizações militares regularmente constituídas.

Na revolução social, o momento mais crítico não é o da supressão do poder, mas o momento seguinte, isto é, aquele em que as forças do regime derrubado desencadeiam uma ofensiva geral contra os trabalhadores, e no qual é necessário salvaguardar as conquistas obtidas.

O próprio caráter dessa ofensiva, a técnica e o desenvolvimento da guerra civil exigirão que os trabalhadores criem contingentes militares revolucionários específicos. A natureza e os princípios fundamentais destes contingentes devem ser determinados de antemão. Negamos os métodos estatistas e autoritários de governo das massas e, por isso mesmo, negamos o meio estatista de organizar a força militar dos trabalhadores, ou seja, o princípio de um exército estatista com participação obrigatória. Em concordância com as posições fundamentais do anarquismo, é o princípio do voluntariado que deve estar na base dos contingentes militares dos trabalhadores. Os destacamentos militares revolucionários de operários e camponeses insurgentes que conduziram a ação militar na Revolução Russa podem ser citados como exemplos destas formações.

Entretanto, não se deve compreender o voluntariado e a ação dos insurgentes no sentido restrito destes termos. Ou seja, como uma luta contra o inimigo local de destacamentos operários e camponeses não coordenados entre si por um plano de operação geral, e agindo cada um sob sua própria responsabilidade. A ação e a tática dos insurgentes na revolução, no estado de seu mais completo desenvolvimento, serão direcionadas(ruk) por uma estratégia revolucionária comum.

Semelhante a todas as guerras, a guerra civil só pode ser conduzida com sucesso pelos trabalhadores seguindo os dois princípios fundamentais de toda ação militar: a unidade de plano de operações e a unidade de comando comum. O momento mais crítico da revolução será quando a burguesia marchar com forças organizadas para suprimi-la, exigindo que os trabalhadores recorram a estes princípios da ação militar.

Dessa maneira, devido às necessidades da estratégia militar e também à estratégia da contrarrevolução, as forças armadas da revolução deverão fundir-se inevitavelmente em um exército revolucionário geral, com um comando comum e um plano de operações comum.

Os seguintes princípios estarão na base desse exército: a.) o caráter de classe do exército, b.) o voluntariado (toda coerção será absolutamente excluída da obra de defesa da revolução), c.) a autodisciplina revolucionária (o voluntariado e a autodisciplina revolucionária combinar-se-ão entre si e tornarão o exército da revolução moralmente mais forte do que qualquer outro exército estatista), d.) a subordinação completa do exército revolucionário às massas operárias e camponesas, na pessoa dos organismos operários e camponeses comuns a todo o país, colocados pelas massas, no momento da revolução, nos postos dirigentes da vida econômica e social. Em outras palavras: o órgão de defesa da revolução – responsável pelo combate da contrarrevolução, tanto nas frentes militares abertas quanto naquelas frentes ocultas da guerra civil (os complôs da burguesia, os preparativos das ações contrarrevolucionárias etc.) – será completamente conduzido por organizações produtivas e superiores de operários e camponeses, às quais ele estará subordinado e pelas quais será politicamente orientado(nap).

Observação. Ainda que tenha de ser construído sob determinados princípios anarquistas, o exército revolucionário não deve ser considerado uma questão de princípio. Ele é apenas a consequência da estratégia militar na revolução; uma medida estratégica à qual os trabalhadores serão inevitavelmente levados pelo próprio processo da guerra civil. Mas essa medida deve atrair a atenção de todos desde já. Ela deve ser cuidadosamente estudada para que não ocorra um atraso irreparável na obra de proteção e defesa da revolução, pois atrasos nos dias da guerra civil poderão revelar-se nefastos para o desfecho de toda a revolução social.

PARTE ORGANIZACIONAL

OS PRINCÍPIOS DA ORGANIZAÇÃO ANARQUISTA

As posições construtivas gerais expostas anteriormente constituem a plataforma de organização das forças revolucionárias do anarquismo.

Essa plataforma, que contém uma determinada orientação(nap) ideológica e tática, é o mínimo necessário a ser acordado entre todos os militantes do movimento anarquista organizado.

Sua tarefa é agrupar em torno de si todas as forças saudáveis do movimento anarquista em uma única organização geral, operando ativa e constantemente: a União Geral dos Anarquistas. As forças de todos os militantes ativos do anarquismo devem ser direcionadas para a criação dessa organização.

Os princípios fundamentais para a organização de uma União Geral dos Anarquistas são os seguintes:

1. Unidade ideológica

A ideologia representa a força que orienta(nap) a atividade de pessoas e organizações por uma via determinada e rumo a um objetivo determinado. Naturalmente, ela deve ser comum a todas as pessoas e organizações que fazem parte da União Geral. Toda a atividade da União Geral dos Anarquistas, tanto geral quanto parcialmente, deve estar em concordância constante e exata com os princípios ideológicos professados pela União.

2. Unidade tática ou método coletivo de ação

Os métodos táticos empregados pelos membros individuais ou pelos grupos da União também devem ser unitários, isto é, encontrar-se em concordância rigorosa, tanto entre si quanto com a ideologia e a tática gerais da União.

Uma linha tática comum (unitária) no movimento tem importância decisiva para a vida da organização e de todo o movimento. Ela liberta o movimento do atoleiro constituído pelas múltiplas táticas que se autodestroem e agrupa todas as suas forças numa única direção e rumo a um objetivo determinado.

3. Responsabilidade coletiva

A prática de agir sob a responsabilidade individual deve ser decisivamente condenada e rejeitada nas fileiras do movimento anarquista. As áreas da vida revolucionária, social e política são, antes de tudo e por sua natureza, profundamente coletivas. A atividade social revolucionária não pode basear-se, nestas áreas, na responsabilidade individual de trabalhadores isolados.

O órgão executivo do movimento anarquista geral, a União Anarquista, opondo-se decisivamente à tática do individualismo irresponsável, introduz em suas fileiras o princípio da responsabilidade coletiva: a União inteira será responsável pela atividade revolucionária e política de cada membro; assim, também, cada membro será responsável pela atividade revolucionária e política de toda a União.

4. Federalismo

O anarquismo sempre negou a organização centralizada, tanto no âmbito da vida social das massas quanto naquele de sua atividade política. O sistema de centralização baseia-se na morte do espírito crítico, da iniciativa, da independência de cada indivíduo, e na submissão cega das vastas massas ao “centro”. O resultado natural e inevitável desse sistema é a escravização e a mecanização da vida social e partidária.

Em contraposição ao centralismo, o anarquismo sempre professou e defendeu o princípio do federalismo, que concilia a independência e a iniciativa do indivíduo e da organização com o serviço à obra comum.

Ao conciliar a ideia da independência e da plenitude de direitos individuais com o serviço das necessidades e dos instintos sociais, o federalismo abre as portas para a sã manifestação das faculdades de cada indivíduo.

Entretanto, não raro, o princípio federalista foi pervertido nas fileiras anarquistas, sendo entendido, sobretudo, como direito de manifestar o próprio “ego”, sem levar em conta os deveres relativos à organização.

No passado, essa perversão desorganizou extremamente nosso movimento; agora é necessário pôr fim a ela decididamente. O federalismo significa o livre acordo dos indivíduos e das organizações, como um todo, para um trabalho conjunto orientado(nap) a alcançar um objetivo comum.

Mas esse acordo e a união federalista nele embasada só se tornam realidades, e não ficções e ilusões, se todos os participantes deste acordo e da União cumprem completamente os deveres aceitos e as decisões tomadas em comum.

Em uma obra social, por mais ampla que seja a base federalista sobre a qual ela foi construída, não pode haver direitos sem deveres, não pode haver decisões sem execuções. Isso é ainda menos admissível em uma organização anarquista, que se compromete exclusivamente com os trabalhadores e sua revolução social.

Consequentemente, o tipo federalista de organização anarquista – embora reconhecendo a cada membro da organização o direito à independência, à expressão, à liberdade individual e à iniciativa – encarrega cada membro de determinados deveres organizacionais, exigindo seu rigoroso cumprimento e a execução das decisões tomadas em comum.

Somente nesse caso o princípio federalista estará vivo e a organização anarquista funcionará corretamente, dirigindo-se ao objetivo definido.

* * *

A ideia da União Geral dos Anarquistas coloca o problema da coordenação (do acordo) das atividades de todas as forças do movimento anarquista.

Cada organização aderente representa uma célula vital da União; cada uma delas tem seu secretariado, que executa e orienta(nap) os trabalhos políticos de ideias e os trabalhos técnicos da organização.

Para a coordenação das atividades de todas as organizações aderentes à União, será criado um órgão especial: o Comitê Executivo da União. Serão deveres deste comitê as seguintes funções: execução das decisões tomadas pela União e a ele encarregadas; orientação(nap) de ideias e organizacional das atividades das organizações isoladas, de acordo com a ideologia e a linha tática comuns à União; divulgação do estado geral do movimento; manutenção das relações de trabalho e organizacionais entre todas as organizações da União e as outras.

Os direitos, os deveres e as tarefas práticas do Comitê Executivo são determinados pelo congresso da União Geral.

A União Geral dos Anarquistas tem um objetivo determinado e concreto. Em nome do sucesso da revolução social, ela deve, em primeiro lugar, selecionar e absorver os elementos mais críticos e revolucionários entre os operários e os camponeses.

Sendo principalmente uma organização para a revolução social e, ademais, uma organização antiautoritária que aspira a abolição da sociedade de classes desde já, a União Geral dos Anarquistas apoia-se, similarmente, nas duas classes fundamentais da sociedade atual: os operários e os camponeses. Ela serve, igualmente, à obra de libertação de ambas.

Em relação às organizações profissionais operárias e revolucionárias das cidades, a União Geral dos Anarquistas deve fazer todos os esforços para tornar-se seu pioneiro e guia de ideias.

A União Geral dos Anarquistas estabelece para si as mesmas tarefas em relação aos camponeses explorados. Ela esforçar-se-á para desenvolver uma rede de organizações econômicas camponesas revolucionárias, e também uma união camponesa específica, baseada em princípios antiautoritários, que funcionarão como pontos de apoio e desempenharão o mesmo papel que as uniões profissionais revolucionárias dos operários.

Sangue do sangue dos trabalhadores, a União Geral dos Anarquistas deve participar de todos os campos de sua vida, sempre promovendo a organização, a perseverança e o espírito de atividade e ofensiva.

Somente nesse caso ela poderá cumprir sua tarefa, sua missão ideológica e histórica na revolução social dos trabalhadores, e tornar-se a iniciadora organizada de seu processo libertador.