América Latina – Problemas e possibilidades para o Anarquismo – José Antonio Gutiérrez Danton
Este documento foi elaborado por ocasião do Encontro Anarquista da Cidade do México e foi apresentado em 7 de julho de 2007. Ele tenta sintetizar alguns dos problemas que enfrenta o desenvolvimento de uma alternativa libertária para as lutas populares na América Latina, sobretudo aspectos em que estamos debilitados e que devem ser aprofundados.
Antes de tudo, em nome do Workers Solidarity Movement (WSM) da Irlanda, gostaria de agradecer o convite que nos foi feito para esta conferência e de dizer que valorizamos enormemente os esforços realizados pela comissão organizadora. Certamente, espaços de encontro e reflexão como este, para nós, são extremamente necessários para compartilhar experiências e pensar que tipo de movimento necessitamos para enfrentar os desafios que a luta nos impõe.
O significado de um encontro como este adquire luzes novas ao ser realizado em um lugar como o México – país que no contexto latino-americano teve um vibrante movimento libertário por mais de um século e que hoje vê renovados ares libertários em um movimento popular que desafia o sistema, demonstrando grande heroísmo por parte das massas anônimas. Houve um trabalho de construção do mundo popular que não deixa de despertar simpatias em todo o mundo, e por isso, um encontro desta natureza adquire uma urgência e uma importância muito maior.
Internacionalmente, atravessamos um momento de reajustes e crises dentro do sistema capitalista que se abriu francamente há aproximadamente uma década. Esta crise e este esgotamento expressam-se no movimento popular que ressurgiu na América Latina, que se vê favorecido por uma série de condições circunstanciais, como a queda dos mal chamados “socialismos reais” e, consequentemente, o desgaste da esquerda tradicional; o esgotamento das possibilidades de abertura neoliberal impulsionada desde o fim dos anos 70 pelas classes dominantes como resposta à crise iniciada nos anos 60 e, em grande medida, a desintegração dos sujeitos tradicionais de luta, o que supôs a recomposição de sua forma original.
Contudo, ainda que as circunstâncias mencionadas tenham tido um impacto ao facilitar uma revitalização do movimento libertário, é responsabilidade dos próprios anarquistas transformar este potencial em uma possibilidade real de transformação. E é precisamente essa a grande falha do movimento ácrata na atualidade, que não soube aproveitar completamente a potencialidade do novo despertar de lutas nas terras americanas. Desde a queda do muro de Berlim, o movimento contentou-se com uma atitude muito pouco autocrítica, em que não nos deixamos de assinalar o “fracasso do modelo soviético” sem ser capazes de reconhecer que o século XX também significou o fracasso do anarquismo em todas as suas tentativas revolucionárias. Assumir esta situação não significa ignorar a potencialidade que tem o movimento – essa é a razão pela qual nos encontramos hoje reunidos – mas utilizar a crítica como uma ferramenta de superação revolucionária. Se o movimento não é capaz de superar seus próprios erros e se seguimos obstinados para trabalhar da mesma maneira de sempre, como se espera poder superar de maneira revolucionária o capitalismo?
O estudo, acompanhado da prática, assume então uma dimensão crítica nas tarefas de libertação. Jamais deixarei de insistir neste ponto, pois, muito frequentemente, encontramos uma falsa dicotomia entre os “práticos” e os “teóricos”. Quando a verdade é bem outra: não há prática revolucionária sem teoria revolucionária e não há teoria revolucionária sem prática revolucionária. Permitam-me indicar alguns dos problemas fundamentais que o nosso movimento enfrenta na luta pela libertação na nossa América:
1. O ressurgir do movimento popular com características libertárias gerou, de uma maneira ou outra, uma situação de espontaneísmo no movimento libertário. Uma situação semelhante de otimismo foi vivida diante da Revolução Russa de 1905; confiamos no puro instinto do movimento popular e acreditamos que o povo é “naturalmente” libertário. Ainda que as respostas de caráter libertário por parte do povo diante de situações de crise do sistema ou diante das necessidades da luta sejam uma realidade – mesmo com a ausência de um movimento anarquista propriamente dito – elas são respostas quase “naturais”. Também não é menos certo que no seio do povo também coexistam tendências autoritárias nada desprezíveis. E ao desprezar sua importância, permitimos a reconstituição do setor autoritário no campo popular, ou a legitimação do Estado e do capitalismo. Um caso muito claro (existem outros em toda a América Latina durante a década) é a situação da Argentina, onde o “Que se vayan todos” [Que saiam todos] passou rapidamente a “Se quedaron todos” [Ficaram todos], e tanto o capitalismo como o abatido Estado puderam recompor-se da crise de maneira relativamente fácil, enquanto a esquerda libertária não foi capaz de criar uma alternativa estratégica. O nível de consenso social por parte do próprio povo que formou as assembleias espontaneamente em torno das figuras burguesas da recomposição, como Kirchner, é assustador – incluindo direitistas como Macri, que ganharam muitíssimo espaço. Não podemos confiar muito nos impulsos libertários espontâneos, considerando-os “suficientes”: é necessário um argumento político claro, programático, para além da conjuntura. Devemos compreender que o papel político dos anarquistas é insubstituível e se nós não estivermos presentes para impulsionar nossas tarefas, ninguém fará isso por nós.
2. Do anterior, do caráter insubstituível do movimento anarquista, conduz à necessidade da organização política revolucionária dos libertários, na qual é possível discutir uma análise coletiva da problemática da construção do poder popular. Tal organização necessita de premissas claras para cumprir seu papel – unidade teórica, unidade tática, disciplina, ação coletiva e democracia interna. Tais são as premissas que devem sustentar a organização, se se deseja que ela tenha a consistência mínima para lhe dar um sentido. O papel da organização anarquista está insuficientemente desenvolvido na grande maioria dos países latino-americanos, ainda que tenham havido esforços sérios de construção, principalmente na América do Sul. Não basta dizer que os anarquistas não são contra a organização: isto deve ser demonstrado na prática, e é na prática que está o nosso mais sério problema. Os meros coletivos ou grupos conjunturais não bastam: eles não servem para acumular experiência para além da experiência que pessoalmente podem acumular aqueles que fizeram parte deles, nem têm capacidade de organizar ou canalizar forças a nível nacional, nível em que se dá a maioria das grandes lutas contra o poder burguês. É necessário superar personalismos, localismos e uma visão provinciana do anarquismo para assumir as amplas tarefas de regeneração que são necessárias nestes momentos.
3. Assim como há uma organização revolucionária, deve haver espaços de convergência com outros setores, pois estamos convencidos que os anarquistas não farão a revolução sozinhos. Há organizações sociais e populares nas quais também temos de realizar nosso trabalho e nas quais necessitaremos, com critério, convergir com setores da outra esquerda, assim como com pessoas distantes do anarquismo ou inclusive da política. A pergunta importante aqui é: como conquistar o máximo de influência? Pois ainda que muita gente nestas organizações talvez nunca se converta ao anarquismo, queremos que os métodos, os princípios e as políticas libertárias influenciem o desenvolvimento destes movimentos. Aí entra em jogo a questão da organização política revolucionária como o instrumento para chegar nestas instâncias com políticas coerentes e coletivamente discutidas. Às vezes, entre a organização política e a organização social, haverá espaços intermediários de organização, os chamados espaços político-sociais, que podem ser correntes ou frentes. Por exemplo: pode haver uma, duas ou três organizações políticas anarquistas, que diferem em certas políticas gerais sobre a sociedade. Mas podem ter uma linha sindical coletiva: então, formarão uma frente sindical. E a linha coletiva dessa frente será aplicada em diversas federações sindicais. Este modelo de organização e de inserção social nos proporciona ótimos níveis de unidade na ação. A unidade, que sempre deve ser produzida pela base e na luta, deve ser buscada sempre que for possível e proveitosa. Com uma política clara e discutida de organização para os três níveis diferentes em que ela atua, podemos voltar a desenvolver um anarquismo do povo para o povo, e romper com as lógicas do grupo alienado que faz política para si mesmo de maneira completamente egocêntrica e sem reparar no que ocorre ao redor.
4. Muitas vezes o anarquismo foi reduzido a uma espécie de “receita” de organização. Pensa-se frequentemente que a única contribuição que os anarquistas devem ter no movimento popular é em termos de organização: assembleias, delegados revogáveis, democracia direta, autonomia do Estado e de partidos, etc. Mas o anarquismo não é somente uma proposta orgânica, de democratização a partir da base, mas é também conteúdo. O anarquismo tem uma grande contribuição em termos de um programa revolucionário, de propostas concretas sobre o quê buscamos e não somente sobre como iremos buscar. Este programa deve ser debatido, discutido e impulsionado por todos os anarquistas organizados em seus distintos espaços de base. Não basta organizar assembleias populares se elas carecem de um projeto social que vá mais além. Precisamos ser mais do que tática e nos converter em estratégia. O anarquismo requer um programa, um projeto de sociedade, não somente para o glorioso dia da revolução, mas também para o aqui e agora. Precisamos desenvolver uma alternativa que se transforme em um polo de atração para aqueles que queiram ver uma transformação em sua vida, não para daqui a um século, mas para agora. Devemos entender a transformação que podemos realizar em curto, médio e longo prazo como uma unidade programática. Falta dizer que este processo de discussão e elaboração requer, necessariamente, uma organização sólida, permanente no tempo e ativa na luta.
5. Tal programa revolucionário, tal projeto social, não pode ser uma cópia de outros programas revolucionários. Este deve responder às necessidades locais, ao conhecimento dos problemas nacionais e regionais, às tradições de luta locais. Nosso anarquismo deve ser isso: o encontro original de uma tradição de luta internacional, universal, válida onde quer que esteja, com um espaço local e concreto onde ele seja levado à prática. Somente assim podemos desenvolver um internacionalismo real, autêntico, de todas as raças, que se nutra da experiência de luta em todas as partes e que por isso mesmo, seja uma ferramenta de transformação mais eficaz. Podemos nos inspirar e extrair linhas e teses centrais da teoria clássica, das experiências estrangeiras ou históricas; mas elas não substituem o imperativo da reflexão própria.
6. É necessário, além disso, conhecer as profundas dificuldades que enfrentará um processo revolucionário de qualquer tipo na América Latina. Muitas vezes, as maiores dificuldades da revolução acontecem quando a burguesia foi derrotada. O anarquismo, então, deve assumir todas as complexidades de uma alternativa construtiva. Terá que estudar as dificuldades enfrentadas por outros processos revolucionários no passado, seja na Nicarágua, na Bolívia, nos movimentos revolucionários desde o Rio Bravo até a Terra do Fogo. Não bastam as teses de Kropotkin de recorrer à abundância, já que, para ele, o comunismo seria aplicável imediatamente após a revolução. Como vamos enfrentar o isolamento inicial? O embargo? Como vamos reconstruir uma economia em ruínas? Supondo que não herdamos um país em ruínas, como faremos funcionar a sociedade de maneira coletiva? Como nos relacionaremos com o mundo exterior? Nada disto pode ser deixado para o improviso, pois quando improvisamos, é quando o peso do costume se faz sentir. Sem um programa construtivo alternativo, as pessoas tenderão a recorrer, muitas vezes, à única maneira (capitalista) que conhece de fazer as coisas.
O anarquismo possui ferramentas de análise e propostas que devemos discutir e debater de antemão, a fim de evitar as improvisações e todos os riscos que isto implica. Devemos estar conscientes de que, como a realidade nem sempre é previsível, certos níveis de improvisação são necessários. Isto requer, portanto, um programa com flexibilidade. Pois ainda que da teoria geral possamos extrair algumas respostas certas, estou convencido de que a revolução social na Irlanda será diferente da do Chile, e esta será diferente da do Japão, ainda que as teses fundamentais e o espírito sejam idênticos. Portanto devemos entender a teoria como um guia para a resolução prática das realidades específicas a enfrentar. Poucas vezes colocamos suficiente ênfase nestes problemas construtivos e como dissemos é esta fase, precisamente, que apresenta o maior desafio para o movimento revolucionário.
Esses são alguns dos problemas. Sem dúvida, alguns companheiros identificarão outros que não apontei ou encontrarão outros novos no caminho da luta. A troca de informação e a prática da organização são os mecanismos para começar a elucidar muitas destas questões. Cabe indicar que não há respostas fáceis para nenhuma destas questões, mas é necessário começarmos a pensar seriamente em todas estas questões visando a transformação.
A questão da organização assume, portanto, uma prioridade fundamental, não por meras considerações teóricas ou por uma obsessão fetichista com ela, mas porque é este o espaço em que se compartilham diretamente e se armazenam estas experiências. E é essa experiência acumulada que garante, da melhor maneira, a superação prática das concepções e práticas errôneas. É certo que o fato de existir a organização política revolucionária não garante que nos transformemos em uma alternativa; mas também é certo que sem a organização, a alternativa jamais terá a possibilidade de concretizar-se. Depende de nós o papel que o pensamento e as práticas libertárias terão nos eventos de transformação que começam a sacudir a América Latina.
Agradeço a atenção dada pelos camaradas e saúdo novamente a Comissão Organizadora desejando-lhes êxito nos objetivos que foram colocados para este encontro.
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