Black Friday – um fenômeno da distopia capitalista
Há um ritual sagrado para a glorificação do deus-Mercado todos os anos, especialmente em Novembro: o rito chamado “Black Friday” (Sexta-Feira Negra). Nesse evento, que é o ápice do espirito liberal/capitalista, pessoas esperam durante dias nas portas de lojas para aproveitar oportunidades imperdíveis de adquirir qualquer bugiganga possível: TV’s, smartphones, videogames, roupas, eletrodomésticos, etc. Nesses rituais, os “homens civilizados”, os exemplares do patamar mais alto da humanidade e do sistema que “deu certo” se amontoam, pisoteiam uns aos outros, se ofendem, se agridem fisicamente e literalmente são capazes de matar pra garantir alguma quinquilharia nova. Animais disputando brinquedos.
Consumir é uma ação humana. Não há erro nisso, não há nada com o qual se envergonhar. Mas valorizar a mercadoria acima da vida humana e da própria dignidade é um feito essencialmente liberal, uma grandíssima “conquista civilizacional” (sim, e o argumento do liberal será apontar para alguma sociedade que não desfruta dessa “abundância”, onde as pessoas não se matam em corredores de supermercados). Essa é a epítome do capitalismo: o sujeito (no caso, a vida humana) está num nível inferior ao do objeto (a mercadoria). Você pode esmurrar a cara de um concorrente para garantir sua torradeira, mas deve garantir que o produto chegue intacto ao carro.
A “Black Friday” é um fenômeno da distopia liberal, uma ideologia que valoriza a posse material, sustentada pela suposta “liberdade humana” (essencialmente baseada nessa posse) – os liberais utilizam justamente a capacidade de possuir algo, de acumular propriedade privada, para medir o nível de “liberdade” humana. O egoísmo e o individualismo são estruturas que permitem com muita naturalidade o pisoteamento de alguém em nome do consumo de coisas essencialmente desnecessárias (não estamos falando absolutamente de alguém que realmente precisa dessas coisas ou que nunca teve acesso a elas, mas de sociedades inteiramente movidas pelo consumismo onde pessoas literalmente descartam objetos “ultrapassados” pelo simples prazer de comprar algo “novo” – um objeto com alguma grande novidade, um grande avanço como uma cor diferente ou um layout retocado). E não falamos dos “bárbaros”, nos referimos especialmente à Black Friday no mundo dos “civilizados” – essencialmente os Estados Unidos da América, os bastiões e guardiões da “cultura ocidental” (seja lá o que isso signifique), da dignidade humana, da liberdade, da prosperidade e da democracia.
O cerne do problema não se trata de aproveitar promoções, comprar algum produto que você goste por um preço mais barato (isso quando as próprias empresas não simulam preços mais baratos para enganar os consumidores). O X da questão está justamente em colocar esses bens totalmente secundários como o centro da existência humana e como coisas com valor intrínseco superior ao da própria vida humana. Essa mudança cognitiva da priorização do objeto acima dos seres é fruto direto da lógica industrial e da sociedade de consumo/consumismo. Consumir é uma das ações humanas e, nem de longe, o ponto máximo da experiência humana.
No Brasil, esse consumismo desenfreado não está num nível minimamente próximo da aberração vista num país como os EUA. Aqui, a maioria da população sequer tem acesso a alimentação adequada. Mas, quem sabe, um dia nos tornemos materialmente ricos e espiritualmente destituídos e possamos aspirar à gloriosa realização civilizacional de praticamente morrer por uma TV de LED.
A posse de bens não deve estar acima da posse da dignidade e do reconhecimento não só da sua dignidade e dos seus anseios individuais, mas do respeito ao tecido social e à dignidade também dos outros. A cultura de individualismo não favorece suas “liberdades” nem sua integridade enquanto pessoa, enquanto portador de uma individualidade: ao contrário, ela dilui tudo isso num amontoado, um aglomerado de pessoas cuja única aspiração é o consumo e que literalmente enxergam sua própria existência como inferior aos anseios, vontades e posses que elas detêm. Sem um espírito comunitário, não há liberdade real e muito menos valorização da dignidade humana, da vida.
Mas é óbvio que tudo isso é “comunismo”. Então, nossos aplausos aos pisoteamentos e mães com suas crianças esmagadas por multidões de consumidores. Afinal, “não há sistema que funcione melhor”.
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