Da Liberdade por Mikhail Bakunin
Importa-me muito o que os outros homens são, porque por mais independente que me julgue ou que pareça pela minha posição social —mesmo que eu fosse papa, czar, imperador ou até primeiro ministro — não deixaria de ser o produto dos últimos entre eles; se eles são ignorantes, miseráveis, escravos, a minha existência é determinada pela sua ignorância, pela sua miséria e escravidão. Eu, por exemplo, sou um homem esclarecido pelas suas inteligências e sou um tolo pelas suas tolices; se iracundo, sou escravo da sua escravatura; se rico, tremo com a sua miséria; se privilegiado, empalideço diante da sua justiça. Mesmo que eu queira ser livre, não posso. Porque à minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão.
Não é imaginação, é uma realidade da qual se tira uma triste experiência. Por quê depois de tantos esforços sobre-humanos, depois de tantas revoluções vitoriosas, depois de tantos sacrifícios dolorosos e tantos combates pela liberdade, a Europa continua escrava? Porque em todos os países da Europa há ainda uma massa, a massa dos camponeses, imóvel, pelo menos aparentemente, e que esteve até aqui inacessível à propaganda das idéias de emancipação, de humanidade e de justiça. É ela que constitui hoje a força, o último apoio e o último refúgio dos déspotas, uma autêntica maça nas suas mãos para nos esmagar, e enquanto nós não conseguirmos incutir-lhes as nossas aspirações, as nossas paixões, as nossas idéias, não deixaremos de ser escravos. Temos de emancipá-la, para nos emanciparmos.(…)
Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito. (…)
A liberdade dos indivíduos não é um fato individual. É um fato, um produto coletivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contribuição de toda a sociedade humana. Os individualistas, os falsos amigos que combatemos em todos os congressos de trabalhadores, afirmaram, com os moralistas e os economistas burgueses, que o homem podia ser livre, que podia ser homem, afastado da sociedade, dizendo que a sociedade tinha sido fundada por um contrato de homens anteriormente livres.
Esta teoria — desenvolvida por Jean-Jacques Rousseau, o escritor mais nefasto do século XVIII, o sofista que inspirou todos os revolucionários burgueses —, denota uma ignorância completa tanto da natureza como da história… Imaginem o homem, dotado pela natureza com as faculdades mais geniais, afastado desde a tenra infância da sociedade humana, num deserto. Se ele não perecesse miseravelmente, o que seria o mais provável, ficaria um bruto, um macaco privado da palavra e do pensamento —, pois o pensamento é inseparável da palavra: ninguém consegue pensar sem linguagem. Mas o que é a palavra? É a comunicação, é a conversação entre indivíduos. O homem animal só se transforma em ser humano, isto é pensante, por esta conversão, só pela conversação. A sua individualidade humana, a sua liberdade, é pois produto da coletividade.
O homem só se emancipa da pressão tirânica exercida sobre ela pela natureza exterior com o trabalho coletivo; pois o trabalho individual, impotente e estéril, nunca saberia vencer a natureza.(…)
Tudo que é humano no homem, e a liberdade mais do que qualquer outra coisa, é produto de um trabalho social, coletivo. Ser livre no isolamento absoluto é um absurdo inventado pelos teólogos e metafísicos.(…)
O homem só se torna verdadeiramente homem quando respeita e ama a humanidade e a liberdade de todos, e quando a sua humanidade e liberdade são respeitadas, amadas, suscitadas e criadas por todos. (…)
O homem não criou a sociedade, nasceu nela. Não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e fatos históricos. Está marcado pela região, clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança em que nasceu.
Tudo isto determina o seu caráter e a sua natureza, dá-lhe uma linguagem definida e impõe-lhe, sem que ele possa resistir, um mundo constituído por idéias, costumes, sentimentos, perspectivas mentais, e o lugar, antes do despertar da sua consciência, numa relação rigorosamente determinada pelo parentesco com o meio social que o cerca. Torna-se organicamente membro de uma sociedade, acorrentado a ela interior e exteriormente, impregnado, até o fim dos seus dias, pelas suas crenças, juízos, paixões e costumes.
A pressão social sobre o indivíduo é imensa, e não há caráter tão forte, nem inteligência tão poderosa que esteja ao abrigo dos golpes desta influência tão despótica como irresistível.
Nada prova tanto o caráter social do homem como esta influência. Poder-se-ia dizer que a consciência coletiva de qualquer sociedade, encarnada tanto nas grandes instituições públicas como em todos os detalhes da vida privada e servindo de base a todas as suas teorias, forma uma espécie de meio ambiente, uma espécie de meio intelectual e moral, prejudicial mas necessário à existência de todos os seus membros. Ela domina-os e sustenta-os ao mesmo tempo, ligando-os pelos mesmos costumes que ela própria determina; inspirando a cada um segurança, confiança e constituindo para todos a condição suprema da existência do grande número, a banalidade, o vulgar, a rotina.
A maior parte dos homens, não só nas massas populares mas também nas classes privilegiadas e esclarecidas, tanto e até mais do que nas massas, só se sentem tranqüilos e em paz consigo próprios quando, nos seus pensamentos e em todos os atos da sua vida, seguem, com fidelidade e cegueira, a tradição e a rotina. (…)
A maior parte dos indivíduos só quer e pensa o que as pessoas que os rodeia quer e pensa; eles acreditam, sem dúvida, querer e pensar por si próprios, mas só fazem reaparecer servilmente, rotineiramente, com modificações quase imperceptíveis ou nulas, os pensamentos e as vontades dos outros. Este servilismo, esta rotina, fontes inesgotáveis do indivíduo vulgar, esta ausência de revolta na vontade e de iniciativa no pensamento dos indivíduos são as principais causas da lentidão desoladora do desenvolvimento histórico da humanidade. Para nós, materialistas ou realistas que não acreditamos nem na imortalidade da alma nem no livre arbítrio, esta lentidão, por mais exasperante que seja, aparece-nos como um fato natural. Partindo do nível do gorila, o homem só com muita dificuldade atinge a consciência da sua humanidade e a realização da sua liberdade. De início, ele não pode ter nem esta consciência, nem esta liberdade; ele nasce um animal feroz e escravo e só se humaniza e emancipa progressivamente no seio de uma sociedade, que é necessariamente anterior ao nascimento do pensamento, da palavra e da vontade; e só o pode fazer por meio dos esforços coletivos de todos os membros, passados e presentes desta sociedade que é, por isso, a base e o ponto de partida natural da sua existência humana. Disto resulta que o homem só realiza a sua liberdade individual e a sua personalidade completando-se com indivíduos que o cercam, e só graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade, a própria sociedade, longe de diminuir e de limitar, cria, pelo contrário, a liberdade dos indivíduos.(…)
Uma revolta radical contra a sociedade seria tão impossível para o homem como a revolta contra a natureza.
É-nos tão pouco possível interrogar se a sociedade é um bem ou um mal, como se a natureza, o ser universal, material, único, real, supremo, absoluto, é um bem ou um mal; é mais do que tudo isto; é um imenso fato positivo e primitivo, anterior a toda a apreciação intelectual e moral, é a própria base, é o mundo no qual, fatalmente e mais tarde, nós desenvolvemos o que chamamos o bem e o mal.
* Mikhail Bakunin, (1814 -1876), anarquista russo.
Fragmentos de Obras Completas, tradução de Jorge Dessa.
Veja também:
O conceito de liberdade de Mikhail Bakunin – Livro
Revolução Social segundo o Anarquismo