Guerra, revolução e movimento operário: as greves gerais de 1917-1919 no Brasil em perspectiva comparada
ENTRE DEBATES, CAMINHOS E ENCRUZILHADAS
Como escrever a história dos trabalhadores? Essa pergunta tem alimentado reflexões e debates entre historiadores do mundo todo há décadas. Há muito que a compreensão da experiência do trabalho deixou de ser urna mera narrativa derivada da história das associações e partidos operários. Aprendemos que os trabalhadores são sujeitos e agentes, e não apenas peões passivos, totalmente dominados por estruturas sociais – o que, por outro lado, não significa negar ou menosprezar as estruturas. Aprendemos que eles têm cultura própria ou, pelo menos, elementos culturais próprios, e que conceitos como gênero, raça e etnicidade não podem ser deixados de lado ou considerados menos relevantes que classe.
Entendemos que as relações de trabalho são espaços de negociação constante, e essa é tão ou mais importante que os conflitos. Percebemos que as perspectivas transnacionais ou a polêmica da história global pode nos permitir enxergar para além de nosso paroquialismo e de nossa crença numa suposta especificidade
local ou nacional. Mas avançamos também em relação à compreensão do Brasil. Nestas últimas décadas, a história do trabalho se esforçou em derrubar uma série de mitos em relação aos trabalhadores nacionais. Talvez, o mais notável seja o do operário manipulado por um Estado demiurgo, de origem rural, alienado por uma estrutura corporativa supostamente onipresente e pela imaginada perda da autonomia original da Primeira República, uma espécie de “inocência perdida’, cujo pecado teria custado a combatividade da classe. Descobrimos que nem a autonomia era tão grande e nem a estrutura estatal tão onipresente, e que os trabalhadores souberam, ao longo de sua história, construir e defender espaços importantes de atuação social, econômica e política.
Se esta história não parou, o desafio de descobri-la e compreendê-la é o que nos move para frente. Os capítulos reunidos neste livro trazem contribuições relacionadas a algumas das diversas discussões que hoje mobilizam os historiadores do trabalho no Brasil e na América Latina. Eles foram agrupados em três partes, conforme a afinidade de seus temas, mas podem ser lidos conjuntamente como um retrato da produção recente da temática no país, e de novas perspectivas e preocupações relacionadas às demandas e aos debates do presente. De fato, ainda nos perguntamos como escrever a história dos trabalhadores. Neste sentido, o que este livro traz são caminhos, mas também encruzilhadas.
A primeira parte do volume, Reforma e luta por direitos, aborda temas como as recentes reformas trabalhistas do continente sul-americano, bem como as transformações atuais nos mundos do trabalho rural e urbano. A instigante reflexão de Fernando Teixeira da Silva sobre a reforma trabalhista à luz do tempo – conceito central para a história – é o capítulo inicial do volume. “Reforma Trabalhista: emprego, tempo e história” é ao mesmo tempo um balanço, uma análise teórica e um roteiro sobre nosso lugar como historiadores do trabalho em tempos tão difíceis. O texto nos remete diretamente às concepções presentistas que presidiram a aprovação das mudanças da legislação; presentismo esse que impede o futuro e bloqueia as ligações com o passado.
A reforma desregula os contratos de trabalhos e estimula a precarização, fazendo com que o trabalhador perca ainda mais o controle sobre o tempo, tanto de trabalho quanto de sua vida familiar. Silva analisa as mudanças trazidas pela nova legislação e seu impacto sobre a força de trabalho e sobre o mundo jurídico, propondo ao final um itinerário de estudos que possa dar conta de temas ainda não suficientemente esmiuçados, como os processos de inclusão e exclusão de parte dos trabalhadores (rurais e domésticos, por exemplo) da legislação trabalhista, as mudanças ocorridas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde sua promulgação em 1943, e perspectivas comparativas e transnacionais que nos permitam ampliar as perspectivas sobre as transformações recentes.
Na sequência, no segundo capítulo, Victoria Basualdo discorre sobre as alterações provocadas pela reforma trabalhista na Argentina e suas principais consequências para a classe trabalhadora daquele país. “Los intentos de Reforma Laboral regresiva cn la Argentina desde 2015: una lectura en perspectiva histórica” localiza historicamente as discussões a respeito das mudanças e presta uma atenção especial ao fenômeno da terceirização e sua liberação irrestrita, um duro golpe para o movimento operário.
Basualdo não deixa de enxergar e discutir a resistência ao projeto e as estratégias utilizadas na luta contra a reforma. Seu artigo nos permite compreender em detalhes as similitudes e as diferenças em relação à experiência brasileira de mudança legislativa e ao projeto neoliberal que tem como alvo os dois países, de certa forma dialogando com a perspectiva comparada proposta por Silva no capítulo anterior.
A seguir, no terceiro capítulo, Clifford Andrew Welch apresenta as transformações recentes nos modos de vida e no perfil dos trabalhadores rurais brasileiros, em “Desafios para os rurais em tempos de globalização” O autor, um dos principais pesquisadores sobre o trabalho no campo no Brasil, nos guia pela trajetória da luta por direitos e das transformações nos diplomas legais relativos ao setor agrícola entre anarquistas, seu processo de inserção na globalização e os inevitáveis reflexos nas organizações dos movimentos rurais, em especial a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Em todo esse percurso, é flagrante o descaso com o bem-estar das populações rurais, hoje cada vez mais traduzido nas políticas neoliberais de retirada de direitos legais e de transformação do caráter formal do trabalho. Aliado, é claro, a uma destruição desenfreada e criminosa do meio ambiente O quarto capítulo “O Judiciário e a Reforma Trabalhista: as alterações na legislação trabalhista entre 1943 a 2017”, de Alisson Droppa, aborda o conjunto de modificações ocorridas na legislação trabalhista do Brasil no período 1943 a 2017. O foco da análise são as alterações nas interpretações do Poder Judiciário, que na prática “atualizavam” a própria legislação, mas mantendo os pilares da CLT.
O trabalho também analisa a forma como a Justiça brasileira definiu a questão da terceirização nas últimas décadas, com decisões que, defende o autor, acabaram, em parte, adiantando-se às reformas trabalhistas aprovadas no Parlamento. A segunda parte do volume, Experiência e diversidade nos mundos do trabalho, agrupa estudos que são uma amostra da riqueza de grupos sociais e da variedade de formas de luta em diferentes contextos temporais e geográficos relacionados às trajetórias de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. O quinto capítulo, “Notícias do Brasil e do mundo: os planos dos fazendeiros de negociarem com ‘seus’ ‘ex -escravos’ a organização do trabalho livre’: de Antonio Luigi Negro, debruça-se sobre o imediato pós-abolição para analisar as estratégias senhoriais para fazer frente à libertação dos escravizados e, especialmente, à mobilização crescente destes. Entre essas estratégias, estava o recrutamento de imigrantes europeus pobres, o que diminuiu a dependência da lavoura para com o braço negro e viabilizou a diminuição geral de salários. Nesse sentido, Negro propõe atenção ao silêncio envolvendo a organização dos trabalhadores em fins do século XIX, concomitante aos discursos envolvendo a racialização das relações, num contexto no qual os negros dispunham de alianças com advogados, participavam da política e animavam um notável associativismo, em contraponto às fragilidades dos imigrantes em lidar com seus patrões e suas dificuldades em organizar um movimento operário. História do trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas No sexto capítulo, “Manoel de Souza Lobo, o mundo do trabalho nos seringais do Rio Madeira (AM) e a relação com os índios Parintintin (1913-1932)”, Davi Avelino Leal apresenta ao leitor a exploração dos povos originários no Amazonas, ampliando a nossa compreensão a respeito da mão de obra indígena. Leal analisa seu objeto a partir da trajetória de Manoel Lobo, intelectual filho de uma mulher indígena com um português e que teve papel importante no contexto da exploração dos trabalhadores nativos durante a febre dos seringais nas primeiras décadas do século XX. Neste contexto, o capítulo enfoca ainda a usurpação das terras dos índios Parintitin, bem como sua escravização no contexto da primeira metade do século XX, além do papel desempenhado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no processo. No sétimo capítulo, a participação brasileira na Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra, Suíça, em junho de 1938 é o tema abordado por Glaucia Vieira Ramos Konrad em “Para garantir os direitos do operário e defendê-lo contra as injustiças e as opressões: mundos do trabalho, Tratado de Versalhes (1919) e a Conferência Internacional do Trabalho (1938)’:
Numa perspectiva comparada, Glaucia considera as reivindicações históricas dos trabalhadores brasileiros, levando em conta a participação dos governos do país durante o Tratado de Versalhes, em 1919, e já citada conferência de 1938. No oitavo capítulo, já no contexto entre o fim do Estado Novo e os momentos que precederam a ditadura civil-militar, o autor César Queiroz, em “A Casa do Trabalhador do Amazonas: o quartel general dos trabalhadores da terra cabocla (1944-1964)” traz uma análise dos momentos que antecederam o golpe civil-militar de 1964 a partir da perspectiva das classes trabalhadoras e de suas associações na região Norte.
Queiroz procura identificar os principais sindicatos e suas lideranças, bem como o protagonismo dos trabalhadores a partir de suas associações. Por fim, o capítulo busca compreender os im- Clarice Gontarski Speranza (org.) pactos do golpe sobre a estrutura sindical amazonense e os caminhos percorridos diante do fechamento autoritário e da repressão. A terceira e última parte do volume, Percursos e debates historiográficos, reúne capítulos que discutem as abordagens e os caminhos percorridos pelos historiadores sobre três temas de pesquisa que despertam interesse e controvérsia. No nono capítulo, Aldrin Castellucci, em “Guerra, revolução e movimento operário: as greves gerais de 1917-1919 no Brasil em perspectiva comparada’: debruça-se sobre as duas paredes da Primeira República sobre as quais mais se produziram estudos. Observando as greves de Salvador, Recife, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, Castellucci produz uma bela análise comparativa sobre a conjuntura econômica e política dos movimentos, incluindo fatores relacionados à Primeira Guerra Mundial e à Revolução Russa, à organização do movimento operário brasileiro e às reivindicações comuns aos trabalhadores dessas capitais – oito horas de trabalho e aumento de salário, em especial. O capítulo examina o peso relativo da imigração e suas consequências em termos de diversidade étnica e racial da classe trabalhadora e permite refletir, entre outros aspectos, sobre a excepcionalidade de São Paulo em relação ao movimento contemporâneo nas demais cidades. No décimo capítulo, a historiografia que trata das relações entre a Igreja Católica e os trabalhadores ao longo da história republicana brasileira é o tema da autora Isabel Bilhão e Deivison Amaral, “Igreja Católica e Mundos do Trabalho no Brasil: breve análise historiográfica” Os autores partem da premissa de que é necessário reavaliar o ativismo de militantes leigos cristãos a partir de uma nova visão do movimento operário, visto de forma menos homogénea e muito mais diversificada e dividida.
Nessa perspectiva, analisam estudos que visam compreender o papel da religião católica na conformação das identidades e cultura dos trabalhadores, nas estratégias de reivindicação e organização sindical, nas percepções morais e visões de mundo, pensadas como constituintes daHistória do trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas experiência do fazer-se classe. O capítulo apresenta a diversidade lemática e a existência de estudos sobre diferentes regiões do país, desde o início do século XX, passando pela criação da Ação Católica Brasileira (ACB), o movimento circulista, as relações Igreja- Trabalhadores ao longo da ditadura, no período da redemocratização e as relações com o chamado “novo sindicalisrno” A coletânea encerra-se com o décimo primeiro capítulo, “Trabalhadores brasileiros antifascistas, III Internacional e a Aliança Nacional Libertadora entre 1934 e 1935: história e historiografia” de Diorge Konrad. Ao optar por uma abordagem que dialoga história social e história política, o texto revisita o projeto, os antecedentes e a atuação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) nos anos 1930. A ANL chegou a atuar em 17 estados, 300 cidades e pontos populacionais, reunindo mais de um milhão e 500 mil ativistas, e sendo submetida à violenta repressão a partir do Manifesto de 5 de julho de 1935. Konrad discute a historiografia a respeito e defende que a ANL ia além de pautas corporativas dos trabalhadores, incluindo demandas por direitos sociais e do trabalho.
Esta coletânea reúne trabalhos de integrantes das mesas-redondas e de simpósios coordenados da programação do V Seminário Internacional Mundos do Trabalho, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre/RS, em 2018. O evento, promovido a cada dois anos pelo GT Mundos do Trabalho da Associação Nacional de História (Anpuh), ocorreu em paralelo com IX Jornada Nacional de História do Trabalho e a IX Jornada Regional do GT Mundos do Trabalho da seção Rio Grande do Sul da Anpuh, contando com apoio do CNPq e da Capes. Durante quatro dias de setembro, 180 pesquisadores do Brasil e do Exterior apresentaram trabalhos em 41 sessões de comunicações e assistiram conferências e mesas-redondas com cientistas brasileiros e estrangeiros. Além dos textos aqui publicados, outras palestras e conferências apresentadas foram publicadas na Revista Mundos do Traoalho’, Parte das comunicações do evento também vieram a público no início de 2019 em e-book com quatro volumes, organizados por esta autora e por Micaele Scheer’, Esperamos que a edição destas obras possa promover novos debates e incentivar ainda mais estudos sobre o prolífico mundo do trabalho, com sua cultura, suas vitórias, suas derrotas e suas lutas. Como escreveu o poeta João Bosco na canção O mestre-sala dos mares, “Glória a todas as lutas inglórias/Que através de nossa
história/Não esquecemos jamais”
Via: Academia
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