Paulo Freire e o humanismo anarquista Por Giancarla Brunetto
“Sobre o humano, o sobre-humano e o desumano
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas.
Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica.
– Paulo Freire Ação Cultural para a Liberdade.
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Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semi-deuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído. Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”
– Fernando Pessoa, poema Linha Reta, em: Obra Poética
Em “Linha Reta”, Fernando Pessoa narra com todo o vigor poético a dor que é ser humano, sentir-se humano, saber-se humano, na plenitude de sua contingência. E com o mesmo vigor, Pessoa é amargo com os que se sentem semi-deuses, e que nada mais são do que igualmente humanos, mas que não se reconhecem como tais. Ou melhor, reconhecem que são mais humanos do que os demais. Que os demais são “demais”. Existem uns mais humanos do que outros? “Onde é que há gente no mundo?”, pergunta Pessoa, já antecipando a inexistência de Pasárgada. Para o poeta, nem todo humano é gente. O poeta leva ao extremo – e é próprio da poesia e dos grandes poetas – a sensível percepção da subjetividade. O “eu” como referência de si, do outro e do mundo, o “eu” como representação, o “eu” que só se apreende e compreende, em relação. Essa relação, mesmo que seja indesejada ou impossível, é sempre uma relação com um “outro”. Só me reconheço como “eu” diante e porque existe o “outro”, mesmo que esse “outro” seja pelo meu “eu” ignorado, subestimado, maltratado, invisibilizado.
Quando o poeta se auto-condena “…vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”, ele declara toda a sua humanidade. Não se espera dos príncipes, dos semi-deuses, tampouco dos deuses, que sejam vis. Entretanto uma nova leitura desse verso e fico a me perguntar qual é o sentido mais mesquinho e infame que a vileza pode ter. O que é vileza? Algo que tem pouco valor, barato. Pode ser a qualidade de um objeto, uma coisa, um produto, uma mercadoria. Pode ser qualidade de uma pessoa? Vil como mesquinho, desprezível, repugnante, abjeto.
Miserável. Sim, podemos qualificar um ser humano como vil, com relação a suas ações, suas atitudes, seu caráter. Porém, uma pessoa pode ser ou não ser vil, pode tornar-se.
Em uma relação de opressão, o “eu” de um sobrepõe-se ao “eu” do outro. Se o tirano é vil por tratar o povo como pessoas sem liberdade, que devem se subjugar às ordens e se adequar à força ao sistema; também o povo, suprimido de sua liberdade, considerará vil o tirano que lhe explora, lhe impõe, lhe escraviza. Vil é um ponto de vista? Sob o risco de cair em um relativismo, penso que o poeta clama pelo reconhecimento de uma humanidade perdida. E que portanto pode e deve ser resgatada. Ele instiga: nem todo o ser humano é humano, mas torna-se gente.
Um dos pensadores brasileiros que mais tematizou a questão do humano é Paulo Freire. O educador nordestino que ganhou destaque na América Latina, em parte pela repercussão de uma pedagogia que vem ao encontro da Filosofia da Libertação de Enrique Dussel; mas especialmente pelas suas falas, ações e seus escritos sobre a Pedagogia do Oprimido, do Opressor, da Indignação, da Autonomia, da Esperança: mas sempre uma Pedagogia, um processo educativo em uma perspectiva libertadora.
Partindo da constatação de que Paulo Freire é uma das maiores referências na área da educação, e compreendendo educação como a forma de libertação do ser humano em gente (o que na terminologia freireana equivale a ser “o ser-mais”), chego à seguinte questão: seria Paulo Freire um anarquista? O que leva a outra questão: De que forma o Anarquismo contribui para a humanização do humano? Creio que para tentar responder a essas duas perguntas, preciso apresentar algumas das ideias freireanas e de sua proposta pedagógica, bem como alguns dos pressupostos do paradigma anarquista e suas contribuições na educação.
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